terça-feira, 11 de agosto de 2009

Beleza Interior

© 2009, by Gustavo Pierobom

— Como ela está, Doutor?

O médico teve dúvidas quanto ao que responderia para aquela desesperada mãe que, com a tristeza estampada no rosto demasiado pálido e os olhos avermelhados, já extinguira suas reservas de lágrimas há dois dias, chorando sem parar na ala de espera do hospital.

— Acalme-se, senhora, sua filha está um pouco melhor. — mentiu.

— O senhor... O senhor acha que ela tem chances?

Novamente o jovem médico hesitou ao notar o vago brilho de esperança que nascera nos olhos da pobre mulher ao absorver as palavras anteriores.

— Claro que há chances. — omitindo que eram cerca de cinco por cento. — Veja bem... A senhora acredita em Deus?

— Lógico doutor, por que não acreditaria?

“Porque sua filha de quinze anos está na UTI” Pensou o médico, para si.

— Então reze, tenha fé... Tudo dará certo.

Alguns dias antes...

— Mayara, o café está na mesa. Você vai se atrasar para a escola.

— Já vou, mãe. — gritou a menina, enquanto, diante do espelho do banheiro, dava os últimos retoques na maquiagem.

Mayara tinha orgulho do reflexo que via no espelho. Um rosto perfeitamente desenhado, sem espinhas (o que era incomum entre as várias amigas do colégio), longos cabelos loiros cacheados, e grandes e expressivos olhos azuis. Assim como o rosto, seu corpo era perfeito, se ajustava bem em qualquer tipo de roupa que desejasse usar, na ocasião eram calças jeans, blusa branca cavada de mangas curtas e um casaco de moletom com capuz.

— Vamos filha, já são quase oito horas.

— Já vou, já vou. — apertando os lábios um de encontro ao outro para espalhar o batom, e correndo para a cozinha.

— Filha, todo dia é isso? Você terá que acordar mais cedo de agora em diante.

— Pô mãe! Eu tenho que me arrumar, você sabe.

— Mas você já é linda, não precisa se maquiar tanto.

— Ah mãe, são só uns retoquezinhos.

— Está bem, mas agora coma. Preparei torradas para você.

— Torradas? Nem morta! Só vou beber um copo de leite desnatado.

— Filha, você precisa se alimentar melhor.

— E você chama toda essa gordura de uma boa alimentação?

— Mas... — não pôde completar a frase. Mayara deu um beijo em seu rosto e saiu porta fora.

— Tchau mãe.

A mãe fez só, a sua breve refeição matinal e logo depois partiu para mais um dia de trabalho no banco.

Mantendo sua rotina das manhãs de segunda a sexta, Mayara esperava solitária, no ponto a uma quadra de sua casa, o ônibus para a escola. Ah, lá vem ele. Veio mais rápido que de costume. Mayara embarcou e, em pé, disputando algum espaço com os outros passageiros do superlotado veículo, esforçava-se para não cair por cima de alguém quando o motorista fazia rapidamente as curvas. Em meio à aglomeração de pessoas no corredor, todas com suas axilas encostando umas nas outras, Mayara refletia um pouco sobre sua vida. Não tinha do que reclamar, sua mãe nunca deixou faltar nada em casa, sempre teve tudo o que queria, nem mesmo a ausência do pai, que abandonara sua mãe quando ainda estava grávida, tinha importância.

Após vinte minutos, ela desembarcou em frente à escola. Como sempre, suas amigas Rafaela e Vanessa a esperavam no ponto.

— Pô, amiga, já era hora. Vamos, vamos... Agora tem teste de química. — Vanessa, enquanto as três apressavam seus passos rumo à sala de aula.

Enquanto, em companhia das amigas, Mayara percorria os corredores quase lotados da escola, era alvo de vários olhares desejosos por parte dos meninos da mesma idade, e, hora ou outra, uma cantada solta no ar, arrancava risadinhas das três amigas.

— Eu não vou mais andar com você, May. — brincou Rafaela.

— Ué, por quê?

— Ainda pergunta? Nenhum menino olha pra mim quando estou com você.

— Deixa disso, boba. Você fala assim desde a sexta série e ainda não desgrudou de mim.

Agora subiam um lance de escadas e adentravam num corredor deserto.

— É, mas é você quem fica com os mais...

— Fique quieta, estamos chegando.

A sala de aula estava mergulhada num gritante silêncio, cabeças baixas inertes nas folhas sobre as mesas. As três fracas batidas que Mayara deu na porta, ecoou como três toques de tambor no interior da sala.

— Ah, o trio parada dura... Já deviam saber que não devem bater à porta ao chegarem atrasadas. — o comentário do exigente professor, arrancou alguns risos dos demais alunos.

— Mas...

— Peguem suas provas e sentem-se. Vou me lembrar deste atraso na hora de corrigi-las.

Passado algum tempo, o sinal do intervalo penetrou na sala de aula.

— Acabou o tempo pessoal, me entreguem as provas... Vocês receberão as notas na próxima aula.

Os alunos levantando-se aos poucos, alguns conferindo suas respostas pela ultima vez, outros ainda rabiscando alguma coisa nas folhas, deixavam os testes sobre a mesa do professor e encaminhavam-se à saída.

— Ufa! Aquela questão dos elétrons foi de matar. Vocês conseguiram resolver? — Mayara para as duas amigas.

— Qual, a numero três?

— Não, a cinco.

— Na minha era a oito.

— Ih, professor nos deu testes diferentes de novo.

— Também, May, da última vez que colamos, ficamos as três com nota máxima, enquanto todos os outros conseguiram no máximo, a média. Você esperava o que? Ele desconfiou.

Riram enquanto dirigiam-se ao pátio da escola. A hora do intervalo era a melhor. As três amigas botavam a fofoca em dia, falavam de garotos, de roupas, daquela menina insuportável da 311 e de como não merecia o namorado bonito que tinha.

— E então, estão prontas para a festa na casa do Pedro no sábado?

— Acho que minha mãe não vai me deixar ir. — respondeu Mayara.

— Por que não?

— Ah, você sabe como é minha mãe. Se preocupa de mais comigo.

— E que mãe não é assim, querida? Vê se vai, heim, vai estar ótima, e eu soube que o Bruno vai estar lá.

Mayara foi assaltada pela lembrança da briga com o atual ficante, Bruno, no último fim de semana. Haviam ido juntos ao parque, ela reclamara dele quando este acendeu um cigarro, o que deu inicio a uma feia discussão, que resultou numa separação imediata e cada um indo sozinho para casa.

— Vou ali na cantina comprar um suco. — disse como desculpa para ficar um minuto só. — Já volto.

No caminho para a cantina, Mayara percebeu uma menina sentada sozinha num canto, chorando. Resolveu ir lá ver o que estava acontecendo. Aproximou-se da figura cabisbaixa e pôs a mão em seu ombro, enquanto sentava-se no chão, a seu lado.

— O que foi, querida? Por que está chorando?

A garota ergueu a cabeça, revelando olhos vermelhos e um rosto percorrido por lágrimas.

— Quero ficar só, por favor.

— Bem vinda ao clube, mas não vou sair daqui, não enquanto você estiver chorando.

— Você não é aquela garota popular do terceiro ano? — em meio a soluços.

— Do terceiro ano, sim, quanto ao popular, é você quem está dizendo.

— Não sou só eu quem diz, a maioria dos garotos da minha sala venera você.

— Bobagem, querida, mas o que isso tem a ver? Não mude de assunto, me conte. Por que está chorando? E não me diga que é por minha causa.

A gora sorriu.

— Ah, vejam só, enfim um sorriso.

— Desculpe, é que eu não sabia que você era tão legal.

— Por quê? Você é uma das que pensam que sou uma bruxa malvada, não é mesmo?

— Não, não é isso, é que...

— Ora, boba, não precisa mentir. Mas não se envergonhe, no fundo, no fundo eu sou mesmo.

As duas riram.

— Qual é o seu nome?

— Fernanda.

— Fernanda, me chamo Mayara. Você quer ser minha amiga? — estendendo a mão.

— Claro! — apertando-a.

Mayara sentiu-se feliz ao ver que as lagrimas de Fernanda haviam desaparecido.

— E então, não vai me contar por que chorava?

— É que os garotos da minha sala ficam pegando no meu pé, nenhum deles gosta de mim, e tampouco as meninas. Eu não tenho amigos, sabe?

— Mas por que eles ficam pegando no seu pé?

— Ora, porque sou gordinha! Eles passam o dia debochando.

— Eles são uns idiotas, isso sim!

— Você não se importa de eu ser gordinha?

— E por que me importaria? A beleza mais importante é a interior. Não adianta você ter cinturinha fina e ser uma bruxa enrustida. Além do mais, você é muito bonita.

— Pare, não precisa mentir pra mim.

— Não estou mentindo... É, bem... Você precisa de uns “retoquezinhos”, mas seu rosto ajuda bastante.

— Que retoquezinhos?

Mayara sorriu.

— Anote aí meu telefone, me liga hoje à tarde, você pode vir à minha casa que eu te dou umas dicas. Está bem? Agora levanta daí, vem, vou te apresentar minhas amigas.

— Rafaela, Vanessa, quero apresentar Fernanda, minha mais nova amiga.

Mayara ficou furiosa ao perceber os “oi” desdenhosos que as duas proferiram no cumprimento.

O sinal tocou.

— Temos que ir. Fernanda, estamos combinadas então?

— Sim. — respondeu Fernanda, expressando sua alegria com um sorriso de orelha a orelha.

Fernanda foi em direção à sua sala, o primeiro ano ficava no andar térreo. As outras três partiram para o segundo andar.

— Quem é aquela gordinha, May?

— Já falei que minha nova amiga, e não fale assim dela!

— Ta bom, ta bom... Mas ela vai andar com a gente?

— Sim.

— Mas e a nossa reputação?

— Que é que tem?

— Como, o que é que tem? Não podemos andar junto com aquela gordinha.

— Olha, se vocês não quiserem andar, o problema é de vocês! Eu vou andar com ela a partir de agora, se não vocês não estão afim, andem sozinhas! — e saiu a passos largos pelo corredor, adiantando-se das outras duas.

Rafaela e Vanessa olharam-se incrédulas no que estava acontecendo.

— Ei, May, espera.

Enquanto, na aula de português do terceiro ano, o clima pesado imperava dentre as três amigas, Fernanda, na aula de história do primeiro ano, era só felicidade.

Eram duas horas da tarde. Mayara, estirada no sofá, controle remoto na mão, assistia televisão, mostrando desinteresse em todos os programas que passavam. Tédio. O celular tocou.

— Alô.

— Oi, Mayara? É a Fernanda.

— Oi, querida. Vai vir aqui em casa?

— Posso?

— Claro, claro. Estou precisando de companhia.

— Como faço para chegar até aí?

— Hum, espere, você tem algum dinheiro?

— Alguma coisa, por quê?

— Quanto?

— Sei lá, uns quarenta reais.

— Ótimo! Me encontre no centro, em frente ao chafariz da sete de setembro, daqui a meia hora. Pode ser?

— Pode.

Faltavam quinze para as três, quando as duas encontraram-se no lugar marcado.

— O que nós vamos fazer? — perguntou Fernanda meio sem jeito.

— Ora, vamos às compras.

— Com quarenta reais?

— Claro!

— Vamos comprar o que?

— Roupas, o que mais?

— Com quarenta reais?

— Claro, sua boba, é só saber procurar.

Foram a varias lojas do calçadão, Fernanda surpreendeu-se ao constatar que Mayara só comprava suas roupas em lojas baratas, e não nas elegantes e caras boutiques dos shoppings, como ela pensara. Mayara não desistiu após dar-se de conta que não era fácil encontrar roupas legais no tamanho GG, disfarçou bem, da amiga, sua frustração e seguiu procurando. Eram quase seis horas da tarde, quando encontraram a loja ideal. Fernanda estava um pouco perdida naquele novo mundo em acabara de entrar. Mayara, após pegar um bocado de roupas nas araras, arrastou-a para os provadores, onde a fez experimentar todas elas. Após vários testes, encontraram um conjunto perfeito: um vestido floral comprido e uma curta jaqueta jeans. Fernanda ficou pasma com o reflexo que viu no espelho, adorou a maneira como o vestido lhe escondeu as gordurinhas, e como havia ficado bonita. O total das compras foi sessenta e cinco reais, Mayara completou o resto do dinheiro e depois ainda pagou o sorvete.

No final do dia, quando cada uma tomou seu ônibus para casa, Fernanda era pura felicidade e gratidão. Mayara estava contente por ter feito sua nova amiga, feliz.

Na manhã seguinte, Mayara cumpria sua rotina. Ao descer no ponto de ônibus constatou que além de Rafaela e Vanessa, Fernanda também a esperava (vestindo as roupas novas), só que mais deslocada, sem conversar com as outras duas.

— E aí amiga, me conta. O que fez ontem?

— Saí com a Fernanda. — as duas receberam incrédulas, a notícia. — Fernanda, vamos. — convidou a outra para acompanhá-las.

No caminho até as salas de aula, Mayara notou que Fernanda sentia-se deslocada e envergonhada diante das outras duas amigas. Tentava em vão, puxar algum assunto que a unisse ao grupo. Não adiantava, Rafaela e Vanessa não a aceitavam. Dividiu o horário do intervalo com as duas antigas e com a nova amiga. As três ao mesmo tempo não estavam dando certo.

O restante da semana seguiu da mesma maneira, Mayara dividindo seu tempo entre as amigas. Novas tentativas frustradas de uni-las aconteceram. Na manhã de sábado, Mayara tentava conseguir a autorização da mãe, para ir à festa na casa do Pedro.

— Filha, você sabe que não me agrada você ir nestas festas nas casas dos garotos.

— Mas mãe, todo mundo vai estar lá.

— Não sei, não sei.

— Olha, vamos fazer o seguinte: A festa está marcada para começar as sete, prometo que, hum... A uma eu pego um ônibus pra casa.

— Quero você em casa até a meia-noite.

— Meia noite e meia?

— Fechado, mas...

— Iuupii! Valeu mãe, valeu!

— Mas, você voltará de taxi, viu?

— Ta bom, ta bom. Valeu mãe.

Mayara correu para o quarto para começar a escolher a melhor roupa e para ligar para as amigas avisando que iria à festa. Depois de falar com Vanessa e Rafaela, ligou para Fernanda para convidá-la para a festa. Fernanda disse que não podia, iria viajar com os pais para casa da avó em outra cidade.

Passou horas se arrumando, tomou banho, fez as unhas, maquiou-se. Após tudo pronto, roupas escolhidas, ficou na internet o restante da tarde, até que chegasse a hora de sair.

— Se cuida, filha.

— Não esquenta mãe, até mais tarde.

— Meia noite e meia, heim. Telefona antes de sair de lá.

— Ta bom, tchau mãe.

Chegou as sete e quinze na já lotada festa. Casa liberada, piscina, som alto, muita bebida, dezenas de adolescentes dançando e se pegando por todos os lados.

— E aí May, estávamos te esperando.

— E aí meninas. — cumprimentou, desaprovando as roupas demasiadas curtas que as duas usavam.

A festa rolou como todos esperavam. Aquele tipo de evento era a válvula de escape do stress adolescente, lá, todos exorcizavam seus demônios, curtiam a melhor fase da vida da melhor maneira possível. Mayara assistia todos embriagando-se, mas não sentia-se excluída, sempre soube se divertir sem beber. Rafaela e Vanessa arrumaram parceiros e ficaram de pegação num canto. Mayara foi caminhar mo pátio, perto da piscina. De repente sentiu-se só, sentiu saudade do seu quarto, da sua cama, saudade das longas noites comendo pipoca e assistindo filme com a mãe (coisa que não fazia há um longo tempo). Resolveu ir embora. Quando caminhava em direção ao ponto de taxi na outra quadra, ouviu alguém chamar-lhe.

— May, espera. — Bruno vinha pela rua, meio cambaleante, garrafa de vodka numa mão, cigarro na outra. — Quer falar sobre o outro dia?

— Não, já to indo embora.

— Ih, May, qual é?

— Se liga Bruno. Você só tem dezoito anos e já ta se destruindo, cara.

— Como, se destruindo?

— E ainda pergunta? Larga esse cigarro, isso é nojento. Enquanto você não largar esse vício eu não quero nada com você, e além do mais, você ta aí, bêbado que não consegue nem ficar em pé. Você ta fazendo papel de ridículo sabia?

— Ridícula é você que se acha a gostosa, mas que qualquer um pega a hora que quer.

— Ótimo! Agora que já sabemos o que um pensa do outro, não temos mais nada pra conversar. Agora me deixa ir embora.

Mayara tentou sair caminhando, mas foi impedida. Bruno a pegou pelo braço e deu um violento puxão. Ela gritava pedindo para que ele a soltasse, mas foi em vão. Bruno, segurando-a pelo braço, arrastou-a através da rua deserta. Os gritos desesperados da garota não foram ouvidos por ninguém. Bruno estava tomado por um ódio até então desconhecido por ele próprio, o desejo carnal incentivado por duas garrafas de vodka o fez arrastar a garota para um mato perto dali. Bateu com força no rosto da garota, que já não tinha mais forças para pedir socorro, a jogou no chão, no meio do capim seco e começou a arrancar suas roupas. Violentou-a uma, duas, várias vezes até sentir-se saciado. Após acabar, começou a socar o rosto de Mayara até que sentiu um estalo de algo quebrando (era o maxilar da garota). Acendeu um cigarro e deu duas ou três tragadas, enquanto observava a menina, desacordada no meio do capinzal, seminua e com o rosto desfigurado. Jogou o cigarro ainda aceso perto do corpo da menina e saiu correndo, cambaleante. A algumas quadras dali, entrou no carro que o pai havia lhe emprestado para ir à festa, girando as chaves, fez roncar o motor do vectra e saiu pelas ruas desertas a toda velocidade. A brasa consumia o cigarro vagarosamente, em contato com o capim seco, começou a formar-se uma pequena chama.

Santos, o sargento da brigada militar de ronda naquela noite, comprava um café na loja de conveniências dum posto de gasolina na Avenida Ferreira Viana. Voltou à viatura e pediu para que seu colega, Sargento Blaas dirigisse um pouco. Saíram. Após cinco minutos de ronda rotineira, Santos avistou um principio de incêndio no matagal às margens da Rua do Consulado.

— Esses viciados filhos da puta! É a segunda vez que ateiam fogo aqui. Blaas, encoste.

Desceram da viatura e correram em direção ao incêndio. Santos portava a arma em punho e Blaas levava o extintor. Só quando chegaram a dois metros do pequeno incêndio, notaram o que estava acontecendo. O corpo desacordado da garota, jogado próximo às chamas, literalmente assava com o calor. Os cabelos já haviam queimado.

— Deus do céu! Blaas, apaga! Apaga logo!

Blaas teve um princípio de vômito, Santos arrancou o extintor das mãos do colega e apagou o incêndio. Sentiu o pulso da garota.

— Ainda respira. Vai lá, porra! Chama a ambulância!

Poucos minutos depois, chegava a ambulância. Os médicos fizeram bem seu serviço, trabalharam rápido, e pouco tempo depois, Mayara (sempre desacordada), já estava sendo atendida no pronto socorro municipal. Após tudo acabado, os dois policiais sentaram-se na viatura.

— E aí, Blaas, ta melhor?

— Mesmo depois de vinte anos de serviço, tem coisas que agente nunca acostuma.

— É parceiro, essa vida é uma merda.

O rádio interrompeu a conversa, um Vectra preto havia se desgovernado em alta velocidade e invadido uma loja no centro. O garoto que dirigia havia morrido.

— Eu não disse que essa vida era uma merda? Outro garoto. — pegou o rádio. — Aqui é o Santos, não podemos agora, estamos na cena de um crime na Rua do Ouvidor. Tentativa de homicídio e possível estupro. Chama a Civil.

Valéria, a mãe de Mayara, estava no sofá assistindo televisão. Dava mais atenção ao relógio que já marcava quinze para a meia-noite do que para o filme que passava. Pensou em telefonar para a filha, mas hesitou, resolveu esperar um pouco mais. A filha ainda tinha quarenta e cinco minutos para chegar em casa. Passado mais algum tempo, o toque do telefone põe fim à indecisão de Valéria, mas trás em troca um mau presságio. Respirou fundo e atendeu. As palavras do interlocutor atingiram-na com incrível impacto. O telefone caiu, suas pernas desobedeceram, tudo girou. Desmaiou.

Recobrou os sentidos alguns minutos depois. Demorou um momento para que entendesse o que acontecia. Quis atirar-se na cama e apenas chorar, mas não se permitiu, sua filha estava sozinha e em apuros, precisava dela. Tinha que ser forte, ser forte por sua filha. Seria. Vestiu um casaco qualquer e correu para o hospital.

No hospital, quando Valéria soube o estado em que a filha se encontrava, foram necessários cinco enfermeiros para segurarem-na e impedi-la de entrar na sala de cirurgia. Uma enfermeira trouxe um calmante. Valéria engoliu o comprimido, sentou e esperou. Agora podia chorar.

Valéria e Mayara só tinham uma à outra. Não tinham parentes vivos e o marido de Valéria havia abandonado-a durante a gravidez. A mulher esperou, só, as seis longas horas para receber a primeira notícia da filha. Um jovem médico apareceu na ala de espera e, consultando um formulário, perguntou quem era o acompanhante de Mayara Oliveira. Valéria prontificou-se. O médico contou o estado em que a menina chegara ao hospital. Valéria recebeu a notícia como uma punhalada. Tentou ser forte, o médico acalmou-a dizendo que a cirurgia correra bem. Aconselhou-a ir para casa, mas foi inútil, Valéria voltou a seu assento e esperou.

Alguns dias depois Mayara fora transferida para um quarto comum. Só então Valéria pôde ver a filha. Entrou no quarto e aproximou-se devagar do leito. Quase não reconheceu sua filha que mais assemelhava-se a uma múmia envolta em bandagens. Mayara perdera a visão do olho direito e tinha a metade do rosto desfigurado por queimaduras. Os cabelos haviam desaparecido e não nasceriam nunca mais. Como a filha estava desacordada, Valéria permitiu-se chorar. Chorou por longos minutos ao lado da filha, mas, naquele momento, agradeceu a Deus por sua filha estar viva, e jurou não chorar mais dali para frente. Seria forte por ela e pela filha.

Das amigas de Mayara, a única que ia regularmente ao hospital visitá-la era Fernanda. Vanessa e Rafaela, após terem visto o rosto de Mayara na primeira visita, não voltaram. Fernanda era quem ficava com Mayara para Valéria poder ir trabalhar. Leitora regular e possuidora de grande acervo bibliotecário, escolhia entre seus livros preferidos para ler para a amiga. Começou com uma coletânea de crônicas humorísticas de Luís Fernando Veríssimo, mas a pedido de Mayara, que queria algo mais empolgante, começou a ler romances policiais e de suspense. Mayara, que nunca lera um romance na vida, ficou fascinada com a inteligência e as divertidíssimas teorias de vida de Fermín Romero de Torres, personagem criado por Zafón em “A sombra do vento”, virou fã, também, dos engenhosos casos desvendados por Hercule Poirot. Estava agradecida por ter Fernanda como amiga. Não sabia o que faria sem ela. Era bom ter a mãe como companhia, mas Fernanda era sempre mais divertida, era naqueles momentos que conseguia esquecer-se um pouco da coisa horrível que havia acontecido. Não lembrava-se de nada após o encontro com Bruno na rua, mas lembrava-se da dor e do monstro que agora o espelho refletia.

Semanas depois Mayara estaria em casa. A polícia já havia pegado o depoimento da garota e pôde ligar Bruno Campos, o garoto que havia morrido no acidente de carro, com seu estupro. Com apoio da mãe e da amiga Fernanda, Mayara pouco a pouco retornava a sua vida normal. Valéria procurava tratar a filha normalmente, como se nada tivesse mudado. Não a tratava como uma pessoa doente, até porque, ela não era. Sua saúde estava em perfeitas condições, apesar das cicatrizes que restaram no corpo. Valéria conversou com a filha sobre a possibilidade de procurarem um psicólogo, Mayara disse não ser necessário. A medida do possível, tudo corria bem, mas agora viria a parte mais difícil: o retorno à escola.

Apesar do calor, Mayara vestiu um casaco de mangas longas com capuz. Queria esconder as cicatrizes dos braços e do rosto. Olhou para o espelho, agora já não sentia orgulho do reflexo. Agora via um monstro. O café em companhia da mãe foi silencioso. Ao contrário de antigamente, comeu as torradas que mãe preparou. Após a refeição, saiu e foi para o ponto de ônibus. Poucos minutos de espera e lá vinha ele. Era estranho, sentia medo de subir no veículo... Mas subiu. Como sempre, estava lotado. Em pé em meio ao aglomerado de pessoas, não sentiu nada fora do comum. Até aqui tudo bem. Quando desceu, em frente à escola, Fernanda a esperava. Não sentiu falta das duas antigas amigas. Fernanda sorria.

— E aí May, está nervosa?

— Um pouco.

— Vai dar tudo certo.

— Tomara.

E foram. Fernanda pensou em acompanhar a amiga até a porta da sala no segundo andar, mas resolveu não fazê-lo. Achou que era uma coisa que Mayara teria que fazer só. Então, como antigamente, dividiram-se em frente às escadas. Mayara subiu sozinha. As cantadas que antes os garotos arriscavam, agora transformaram-se em olhares desdenhosos, Repugnantes. Mayara consultou a agenda, agora tinha aula de química e já estava três minutos atrasada. Tudo o que precisava era um xingamento por parte do professor. Bateu três vezes à porta e entrou.

— Já deveria saber que não deveria bater à porta quando... — o professor freou a repreensão quando olhou para o rosto irreconhecível da menina. Engoliu em seco e trocou suas palavras. — Ah, querida, seja bem vinda de volta... Pode sentar-se.

Mayara caminhou sob olhares de horror dos colegas que confabulavam entre si. A maneira diferente em que o professor acabara de agir, foi muito pior que mil xingamentos. O famigerado professor rabugento agiu gentilmente com um aluno pela primeira vez em sua vida. Naquele momento Mayara sentiu-se inferior a todos os outros, sentiu-se diferente. Tudo o que não queria. Sentou-se próxima à Vanessa e Rafaela, trocaram um “oi” superficial como se fossem desconhecidas. Não conversaram mais. Aquela foi a aula mais longa e torturante que Mayara já assistira.

O toque do intervalo foi como um sinal de libertação. Mayara saiu para o pátio da escola com incrível rapidez. Correu para um canto, sentou-se no chão e começo a chorar. Fernanda a encontrou ali, no mesmo canto onde ela mesma estava quando conhecera sua única amiga. Os papéis estavam invertidos. Fernanda sentou-se no chão, ao lado da amiga.

— O que foi, May, pó que ta chorando?

— Eu não consigo. Não consigo... Todos pensam que sou uma aberração, um monstro.

— Bobagem... Ei, lembra o que você me disse quando nos conhecemos? “Eles sãos uns idiotas... A beleza que vale é a interior”. E você, May, é a pessoa mais linda que eu conheço. É minha única amiga e eu amo você. Não desista assim tão fácil. Eu e você sabemos que vai ser difícil, mas eu vou estar sempre do seu lado e, juntas, vamos conseguir.

Abraçaram-se por longo tempo. Aquele “oi” na aula de química, seria a última palavra que trocaria com Rafaela e Vanessa. Agora as duas faziam de tudo para evitar Mayara. Não queriam andar com uma pessoa como ela.

Dia após dia a convivência com os colegas de escola ficava mais difícil. Exceto sua mãe e Fernanda, ninguém mais gostava dela. Não como antes. Os que não sentiam repugnância, sentiam pena. Esta pena era o que mais a feria, era o que mais a fazia sentir-se diferente. Sentia-se como um animal. Numa tarde chuvosa, Mayara despiu-se e ficou horas nua em frente ao espelho. Refletiu toda sua vida, relembrou como era antes e como era agora. Tudo o que havia mudado. Tudo o que perdera. Pensou em como seria sua vida dali por diante, como seria difícil arrumar um emprego... Um marido. Resolveu desistir.

Ainda nua, foi até o banheiro e pôs a banheira a encher. Voltou ao quarto e, ao som dos relâmpagos que cortavam o céu e da chuva que batia com violência no telhado, começou a escrever duas cartas: uma para sua mãe e outra para Fernanda. Cartas de despedida. Foi até a sala para deixar as cartas sobre a mesa de centro. Quando largou os papéis sobre a mesa, notou um bilhete deixado pela mãe...

“Filha, vou sair mais cedo do trabalho hoje e locar filmes para assistirmos. Convide a Fernanda.

Beijos.”

Mayara leu várias e várias vezes o bilhete. Sentou-se no chão e abraçando as próprias pernas, começou a chorar. Chorou como nunca havia chorado antes. Notou a água oriunda do banheiro invadir a sala, mas ficou ali, imóvel. Pensou nas palavras de Fernanda relembrando a sua própria teoria sobre beleza interior. Pensou em como seria injusto com sua mãe encontrar a filha dentro da banheira com os pulsos cortados. Não. Não desistiria. Não iria ser fácil... Iria sofrer... Mas não desistiria.

Reagiu como que tivesse levado um choque. Correu para o banheiro para desligar a água. Foi até o quarto e vestiu-se rapidamente. Estava encrencada, precisava explicar para a mãe como havia inundado a casa toda... Olhou para o espelho e... Sorriu!