sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Palhaços Macabros — A Última Sessão - Partet II

III

Chegamos num ponto de nossa história em que é preciso dar nome aos bois, tanto por respeito aos sobreviventes, quanto pela dificuldade em conseguir sinônimos suficientes para suprir o anonimato em larga escala. Caso o leitor não seja lá muito simpatizante da nomenclatura tardia, sugiro que pule de parágrafo, embora não tenha como me responsabilizar por pequenas confusões que tal atitude possa causar.


Fernando – Poirot, garoto das horas, grande fã de intrigas policiais.

Renato – o rapaz de cabelo estilo militar, primeiro a sugerir a evasão do local do crime.

Helena – a mulher das chaves, assassina confessa de um vira-lata na semana anterior.

Isabel – a adolescente namorada do Conan.

Roberto – o Conan.

Adilson – mais velho da turma, pioneiro no achamento dos corpos.

Érica – a menina cujo pai é fiscal do shopping.

Stephanie – tão sarcástica quanto Fernando, a única garota entre os quatro que descobriram os palhaços.

Júlio – outro membro do quarteto descobridor.

Hugo – nosso protagonista, que começa a achar aquela “surpresa do cotidiano” menos divertida a cada minuto.


Aqueles cujos nomes não constam da lista acima são quase figurantes neste caso, possuindo suas contribuições teóricas um caráter lacônico e dispensável, com o perdão da redundância. Para que não venham alegar, porém, que eu os esqueci completamente, sempre que se deparar com uma fala cuja autoria seja atribuída vagamente a um pronome indefinido (“alguém”, por exemplo), esteja à vontade para pensar neles.

Voltamos, finalmente, o foco de nosso interesse para a base da escada de mármore, onde ocorria a seguinte deliberação por parte dos sobreviventes, acerca das circunstâncias atuais:

— Acham que nos viram?


— Talvez. Apesar de o vidro escuro só ser translúcido para um dos lados, nos olham como se pudessem enxergar aqui dentro sem problemas.


— Caramba, quem são esses caras?! — espantou-se Renato, fazendo o sinal da cruz após espiar pela segunda vez o grupo bizarro no exterior do shopping.


— Primos do Ronald McDonald é que não — garantiu Stephanie, e desatou a explicar — Quando vimos que as portas alternativas também não abriam, resolvemos descer pra, sei lá, tentar quebrar os vidros das saídas principais com um extintor de incêndio...


— Não iam conseguir — Roberto interrompeu — Os vidros foram...


— Blindados depois do assalto — completou a garota, cansada — O Júlio nos lembrou isso depois. Só que aí já tínhamos desistido do plano A, pois encontramos os amigos do Bozo parados aí fora.


— E partimos para o plano B — concluiu Júlio: — arrombar lojas de prestígio e torcer pro alarme silencioso chamar a polícia. Escolhemos a Prada e a Tube no segundo piso.


— Deu resultado?


— Estão ouvindo alguma sirene? — devolveu Stephanie, sarcástica.


— Acham que é o mesmo pessoal que roubou aqui da outra vez? — alguém perguntou, fitando os palhaços.


— Tudo é possível — ponderou Helena — Mas não faz sentido que ainda estejam do lado de fora...


— A menos que esperem reforço para invadir novamente — arriscou Hugo, soando menos otimista do que pretendera.


— Mas se já estavam dentro, por que sairiam? — refletiu Isabel, metódica.


— Como, “já estavam dentro”?


— Ué, decerto foram eles que mataram os cinco no terceiro andar, não?
— Mas sem sombra de dúvida! — trovejou Adílson, parecendo aliviado — Claro que foram eles, olhem aquelas facas!


— Então tava mesmo todo mundo morto lá em cima? — quis saber Júlio, do alto de sua vã esperança.


— Fatiados, companheiro — disse Fernando, soturno — E os pedaços dispostos no chão, formando uma palavra que se justifica agora.


Todos o olharam intrigados.


— “SORRIA”, gente — explicou o garoto — O que é mais inerente a um maldito palhaço?


Houve um silêncio de macabra compreensão.


— Nunca gostei de palhaços — alguém confessou, enquanto Renato se espichava para vê-los outra vez.


— E aqueles ali nem humanos parecem... Vejam os olhos!


— Devem estar usando máscara. Quadrilhas fazem isso.

Hugo sentiu que aquilo equivalia a chutar cachorro morto:


— Galera, essa conversa não vai nos ajudar em nada. O que quer que seja que esses caras estão esperando, devemos dar um jeito de buscar ajuda antes que entrem aqui e peguem a gente.


— O garoto tem razão.


— Mas se já disseram que o alarme não funciona...


Hugo voltou-se para os quatro anteriormente dispersos:


— Viram se há palhaços em todas as saídas?


— Algumas portas são opacas, não dava pra ver — disse Stephanie — Nas demais, sim, pelo menos quatro palhaços em cada uma.


— Tudo isso?! — horrorizou-se Helena.


— É, mas pode ser que nem todas sejam guarnecidas ao mesmo tempo. — contrapôs Fernando — Se enxergaram vocês, capaz de terem corrido pros outros postos, para dar impressão de multiplicidade.


— Exato — concordou Hugo, e, para a taciturna Érica — Você disse que seu pai trabalha aqui?


— Sim. Não faz muito tempo que foi transferido...


— Tempo suficiente para saber a localização da sala de monitoramento das câmeras de segurança?


— Ah... Sim, claro que sim. A sala fica, se me lembro bem, no...

— Não precisa explicar, você vem comigo.


— O que pretende fazer, rapaz?


— Se pelo menos um de nós puder escapar, é o suficiente para buscar socorro. Lembro agora que quando trabalhei nas Americanas daqui, coisa de seis meses atrás, fazíamos o descarregamento dos caminhões com novas mercadorias pela área de serviço, onde há um elevador especialmente para esse tipo de acesso. É um lugarzinho bem escondido, quase invisível, o que não significa que não seja vigiado pela segurança do shopping. Se eu conseguir encontrar o foco da câmera que o monitora nesse momento e a barra estiver limpa, como suponho, desço em silêncio pelo elevador e ligo pra polícia do orelhão mais próximo.


— E por que não podemos descer todos? — inquiriu Adílson, inepto como sempre.


— O elevador é pequeno, e chamaríamos muita atenção — explicou Hugo, como se fosse necessário. — O lance nesse caso é a discrição máxima: enquanto virem pessoas aqui dentro, os palhaços não desconfiarão de que alguém está tentando fugir.


— Mas não acha que precisará de cobertura, caso a tal passagem não esteja deserta, mas apenas “guarnecida em menor número”? — perguntou Isabel, perspicaz.


— Bem...


— Eu vou com você — ofereceu-se Roberto prontamente, enchendo sua namorada de orgulho. Como ele seria mesmo o escolhido (por razões óbvias e anabolizadas), Hugo limitou-se ao consentimento. Houve, entretanto, mais solidariedade:


— Também vou — disse Júlio — O amigo aí é grande, mas não é dois.


— E se com minha espada eu puder defender a bunda branca do Hastings, assim o farei — disse Fernando, parodiando O Senhor dos Anéis enquanto afrontava a liderança de Hugo e concedia um raro momento de descontração aos aflitos sobreviventes, tudo ao mesmo tempo.


— E eu vou porque... — começou Stephanie, sob olhares espantados — Ah, precisa ter uma mulher no grupo, ora!


Fernando olhou-os emocionado:


— Somos a Sociedade do Elevador...


— Cala a boca! — advertiu o líder, e em seguida tirou o rádio transmissor que guardara no bolso para entregar a Helena — Qual o seu nome, senhora?


A mulher respondeu, não sem antes corrigir o pronome de tratamento para “senhorita”. Hugo também se apresentou.


— Certo, Helena, quero que fique com isso; se os palhaços derem a impressão de ter notado alguma coisa ou simplesmente saírem correndo, você aperta o botão amarelo e nos avisa, ok?


— Mas como vão ouvir...?


— O Poirot pegou o outro rádio na cena do crime. — explicou Hugo e, para Fernando: — Achou que eu não tinha visto, amigo?


Ele deu de ombros. A comitiva partia.


— E se virem um caminhão se aproximando das portas, saiam correndo — Stephanie ainda aconselhou — Ele provavelmente vai dar ré e arrebentar tudo...


Hugo, Érica, Júlio, Roberto, Stephanie e Fernando concordaram que seria mais prático declinar dos degraus de mármore e tomar o elevador do setor sul para subir até a sala das câmeras, que, segundo a primeira garota, situava-se nalgum ponto entre o acesso ao estacionamento coberto e o almoxarifado de uma loja de eletrodomésticos, no quarto andar. Passavam das duas da manhã, embora eles não soubessem disso. Hugo sentia especial raiva de sua dependência ancestral do celular para saber as horas, e verdadeira aversão pela filosofia de cassino adotada por dirigentes de shoppings: “nada de relógios à vista, mantenha os clientes gastando dinheiro sem dar a mínima para o tempo que isso possa levar”.

A caminhada até o elevador foi taciturna. Uma vez dentro dele, porém, fizeram-se as apresentações cabíveis rapidamente, e Stephanie pareceu levemente desconfiada ao formular a seguinte pergunta aos demais, exceto Júlio:


— Vocês demoraram muito lá em cima, o que aconteceu?


— Acredite, todas as conclusões a que chegamos naquele banheiro caem por terra com o surgimento dos palhaços — disse Fernando, evasivo.


— Ainda bem, não é? — ponderou Roberto, mãos no bolso — Aquele papo paranóico de que um de nós era o assassino tava deixando todo mundo assustado...


— Como é que é? — horrorizou-se Júlio.


— Olha, tudo o que você e a Stephanie precisam saber sobre o banheiro lá de cima é que... — e Hugo repetiu em linhas gerais a gravação contida no aparelho que entregara a Helena. Os dois leigos escutaram pasmados. Quando terminou, as portas de metal do elevador já se abriam, descortinando a última parada.


— 21 mortos? Quer dizer que estão...


— Contando com a gente, exatamente.


— Mas e a lenda? — perguntou Stephanie, confusa, enquanto caminhavam.


— Quê que tem ela?


— Não se encaixa. Você disse que a gravação termina falando que 21 pessoas morreram “sob circunstâncias similares”. Ou seja, queimadas, não é? Mas se os corpos lá no banheiro estavam só cortados em pedaços...


— Você diz “só”?


— Peraí, ela tá certa. — apoiou Fernando — Essa parte eu também não saquei direito. Se bem que assassinos não precisam ser lógicos na vida real...


— Acham que podem estar planejando botar fogo no shopping com a gente dentro? — engrolou Roberto, que até diminuía em estatura nesses rompantes de covardia. Ninguém respondeu imediatamente.


— Vamos torcer para que haja extintores suficientes — concluiu Érica, que guiava o grupo pelos corredores lúgubres do quarto andar — Chegamos.

A porta de madeira simples do setor de segurança surpreendeu a todos por dois motivos: o primeiro é que estava aberta, justificando a extrema cautela com que o grupo executou o simples ato de cruzar em alguns milímetros o limiar que separava o cômodo do corredor. Constatando-se também sua desertificação, evidenciou-se a segunda surpresa: um cheiro forte o bastante para ser percebido, mas fraco demais para intoxicar impregnava o aposento. O aroma possuía para o sexteto uma familiaridade recente, embora ninguém conseguisse recordar onde o havia inalado pela última vez. Mais para aplacar sua curiosidade do que por qualquer outra coisa, empenharam-se na procura da origem do odor. Foi Fernando quem obteve sucesso, ao retirar da parede o gradil que cobria uma das muitas saídas de ventilação dando nas salas de projeção, um andar abaixo.


— Botaram a gente pra dormir — disse o garoto, ao despejar pelo menos uma dezena de frascos spray quase vazios no chão da sala. Os rótulos dos objetos haviam sido raspados e os “gatilhos” colados com fita adesiva, de modo a pressionarem ininterruptamente o esguicho para baixo, até que todo o conteúdo da lata se exaurisse.

— Isso é lança-perfume? — perguntou Roberto. Fernando assentiu.


Nesse momento, Stephanie e Júlio expressaram, como se houvessem descoberto a pólvora, suas confirmações individuais sobre terem de fato caído no sono na sala de cinema. Hugo lhes explicou, enigmático, que há pouquíssimo tempo atrás aquela informação os teria colocado numa pequena lista de privilegiados fora de suspeita.


— Explica muita coisa — prosseguiu Fernando, apontando as latas — O “sob condições similares” da gravação não se referia ao incêndio nas ocas onde os índios batiam as botas, afinal, mas ao fato de eles terem morrido enquanto estavam subconscientes: dormindo, drogados, sei lá. A pergunta é: por que nos dopariam se não tinham intenção de matar?


— Como sabe que não? — interveio Roberto — Talvez pensassem que a quantidade de lança-perfume fosse suficiente para fazer o serviço.


— Foi exatamente o que pensei — continuou o outro — E, tendo um pouco de imaginação, é possível supor que dessem o trabalho por concluído, mas aí apareceu o quarteto fantástico lá no térreo e eles souberam que tinha gente viva aqui dentro. As portas terem travado milagrosamente nessa hora é que não bate.


— Tudo bem, depois a gente vê isso — impacientou-se Hugo, e se virou para o mosaico de imagens dispostas em cinco monitores de pelo menos quarenta polegadas, inclinados sobre um painel repleto de botões, luzes e pequenas alavancas, no outro extremo da sala. Os amigos o imitaram. Antes, contudo, que dessem início à busca específica pela câmera que monitorava a área de serviço, algo sumamente suspeito saltou aos olhos no monitor com a etiqueta “externo” sob a tela: o lado de fora do shopping encontrava-se absolutamente deserto.


— Cadê os palhaços?


— Será que fugiram?


— Mas por que a Helena não ligou?


— Fernando, pega o rádio. Rápido.

O menino obedeceu.

— Olha só, alguém acionou os sprinklers da sala dois do cinema! — exclamou Stephanie, indicando uma luzinha verde “On” que piscava sobre o rótulo “Spk” da sala correspondente. — Por isso tinha água no chão quando saímos de lá.

— Verdade, eu reparei nisso também...


— Mas como os sprinklers foram ativados e ninguém viu?



Hugo recebeu o rádio. Não teve tempo de dizer que nem percebera a água de que os amigos falavam.

No piso térreo, Helena acabara de lembrar uma coisa que lera havia alguns meses numa revista empresarial local. Os dirigentes daquele shopping, visando um tal marketing psicológico, haviam providenciado para que em todos os corredores dando para as saídas principais houvesse uma parede de ângulo pouco mais fechado em relação às portas magnéticas, na qual seria estampada, em tamanho natural, uma foto do exato panorama que o cliente tinha ao sair do shopping por aquela porta. Isso criava, eventualmente, uma agradável sensação de Dejà Vu, embora muitos não soubessem como tal atitude poderia beneficiar o estabelecimento, financeiramente falando.


Foi mesmo enquanto acabava de contar essa curiosidade aos demais que a mulher escutou, assustada, o chiado do rádio transmissor que enfiara na bolsa.

“Helena”, dizia a voz “Helena, você tá aí?”


“Estou, sim, Hugo, pode falar”


“Ainda estão atrás da escada?”


“Positivo”


“Pra onde os palhaços foram?”


“Como assim?” e Helena pôs metade do rosto para fora da escada “Eles continuam aqui, ué”


“Não é possível, as câmeras mostram o lado de fora do shopping completamente vazio”


“Ora, mas como...”

Ela estacou no meio da frase. Acabara de lhe ocorrer que o único palhaço visível lá fora fazia um movimento muito semelhante ao dela com o rádio próximo à boca, substituindo-se o aparelho pela faca ensangüentada. Acenou displicentemente para o outro — e o que viu a fez estremecer.


“Hugo, espera só um minuto” pediu, e, para os demais:


— Pessoal, vamos para frente da escada.


— O quê?! — sibilou Renato — Você enlouqueceu?


— Helena, é melhor a gente não se expor demais...


Mas ela estava decidida. Levantou-se e deu a volta nos degraus de mármore, até ficar de frente para as portas magnéticas travadas.


— O que ela tá fazendo?!

— Vem todo mundo pra cá agora!


Algo na voz dura e temerosa da mulher fez com que cedessem. No instante exato em que todos saíam do esconderijo, um grupo de palhaços equivalente apareceu através do vidro defronte. Muitos quiseram voltar para trás da escada ao deparar-se com semelhante visão, mas Helena os manteve firmes:


— Levantem os braços — ordenou.


— O quê?


— Você bebeu?


Só levantem os braços, por favor.


Confusos, obedeceram. Os palhaços, em sincronia perfeita, fizeram exatamente o mesmo movimento.


— Como eu suspeitei... — sussurrou ela, trêmula, e, voltando a falar no rádio: — A inclinação da foto na parede faz parecer que estamos vendo o exterior do shopping, mas isso está errado! Hugo, não são palhaços de verdade. É o nosso reflexo no vidro das portas!


— O quê?! — berrou o garoto, quatro andares acima.

E naquele momento a luz de todo o estabelecimento se apagou.

— O que foi isso?!
— Quem mexeu no interruptor?
— Meu Deus!
— Alguém entrou no shopping! O elevador foi solicitado aqui em baixo!
— Vai! Vai!

A confusão de vozes no rádio assustou mais os seis na sala de projeção do que a queda de energia em si. A sorte foram os monitores de segurança, que mantiveram o cubículo na penumbra enquanto tentava-se decifrar que diabos ocorria no piso térreo.


“Helena! Helena, o que foi?!”, Hugo gritava.


— Ela disse que não tem palhaços? Como é possível?


— Não sei...!


— Alguém entrou, eles falaram do elevador.



Nesse instante, a luz retornou, vacilante, como se indecisa sobre qual fase escolher.


— Hugo, as câmeras!

As imagens nos monitores se multiplicavam em inúmeros quadros coloridos e estáticos. A movimentação na escadaria do primeiro andar chamou logo a atenção para o grupo que subia os degraus, quase em desespero.


— Deve ser o pessoal da limpeza no elevador — disse Érica, apontando — Meu pai diz que eles sempre mexem nas instalações elétricas, quando algum funcionário esquece de apagar qualquer luz interna, ao sair.


— E a galera não estaria correndo atrás dele, se não fosse — observou Fernando.


— Bora descer!

A luz continuava a oscilar quando o grupo seguiu apressado pelos corredores em direção à escada mais próxima, já que o elevador estava ocupado. O cheiro fraco do composto químico se dissipou por completo. Érica fechava a fila. Roberto ia na frente, e foi o primeiro a botar os pés no já conhecido pavimento do terceiro andar. Mas o elevador chegara primeiro.


— Estão indo pro cinema! — Stephanie berrou, apontando os três homens uniformizados que já corriam ao final da passarela que dava no conjunto das salas de projeção. Seis vozes gritaram por eles. Não lhes deram atenção. Era como se alguém os tivesse alertado para um problema sério ocorrido nalguma sala por ali.


— São surdos?


— Vamos!


Hugo não podia reprimir a leveza que se apoderara de sua alma com a simples visão daqueles seguranças. Estavam salvos. Não importava quantos depoimentos precisaria dar ou as broncas que iria ouvir. O pesadelo chegara ao fim, e a imagem dos amigos correndo agora a seu lado na passarela era registrada em deliciosa câmera lenta. Na pior das hipóteses, sairia dali com pelo menos mais 7 pessoas com quem dividir um saco de pipocas, na próxima vez que fosse ao cinema — ia demorar bastante, é verdade. Aquela noite entraria para a História, e provavelmente repetiria o relato da angústia que vivera num certo shopping umas cem vezes aos filhos e netos, acrescentando heroísmos e suprimindo covardias, quando a senilidade o impedisse de distinguir o “já contei” do “não contei”.

Pobre Hugo...

A larga porta da sala dois era a única aberta, e por isso o sexteto da “Sociedade do Elevador” considerou que os homens da segurança só podiam ter entrado por ela. Estava certo.


— Nós estamos aqui... — ofegaram, como se alguém se importasse com isso. Foram recebidos a exclamações de “Meu Deus!” e “Quem é capaz de fazer uma barbaridade dessas?!”, embora não se dirigissem a eles “no estado atual”.


Hugo, Stephanie, Júlio, Roberto, Érica e Fernando olharam para as poltronas no alto e levou tempo até que se atrevessem a tentar compreender. Os dez do térreo também aportaram na sala naquele instante. Outra vez nenhum segurança lhes deu atenção.



E naquele momento, uma antiga lenda indígena aflorou com nitidez cristalina às mentes de 16 pessoas, quando estas se depararam com outras 16 figuras humanas metidas em vestes circenses, de maquiagem borrada, feições zombeteiras, facas de plástico nas mãos e olhos horrivelmente virados nas órbitas.



A subconsciência evoluíra para o estágio seguinte, e enquanto os “sobreviventes” do shopping acreditavam-se lutando para permanecer neste mundo, seus corpos jaziam sentados em poltronas de veludo vermelho, alguns metros acima, definindo a aparência dos que habitavam o próximo sem saber já há algum tempo.


IV

A fita elástica que outrora organizara o fluxo da fila para o cinema no Shopping New Horizon fora substituída por um feio exemplar de plástico, com coloração ora amarela, ora preta, isolando o acesso de estranhos que ainda não haviam chegado a todas as salas de exibição no terceiro piso. Dois homens conversavam em frente à enorme tela da sala número 2, enquanto um grupo de peritos tirava fotos do local e examinava os corpos dispostos aleatoriamente pelas poltronas em ascensão. A estatura divergente de ambos também servia para ilustrar a posição ocupada na hierarquia da polícia.

— Algum sobrevivente aqui?


— Nenhum, capitão. Ainda não foi possível precisar a hora da morte, mas logo teremos essa informação. Como vão as coisas lá no banheiro?


— O pessoal da Politec chegou há algum tempo. Vexame, nem eram corpos de verdade.


Não?! E o que eram?


— Bonecos de cera. O galão em cima do urinol continha vinho Brunello di Montalcino. Um dos peritos é enólogo — explicou, ante o olhar indagador do subordinado — O maníaco que fez isso deve ter gasto uma nota só para fazer parecer que esquartejara os cinco funcionários verdadeiros aqui em cima, quando fez praticamente a mesma coisa, no subsolo, por outros meios.


— Encontraram os verdadeiros fiscais?


— Nus, dopados e amarrados, no estacionamento subterrâneo. A ambulância já os levou para o Pronto-Socorro, mas não creio que vão escapar com vida. Não depois da promessa que o assassino fez no rádio que achamos sobre a escadaria do segundo andar.


— A propósito, encontramos o outro rádio, aqui na sala.


— Alguma nova pista?


— Nada, só estática. Alguns ruídos de risada, conversas anteriores dos funcionários...


— Não dá pra entender esse cara. Ele dá um jeito de bloquear o sinal de comunicação com qualquer pessoa aqui dentro, mata todo mundo, veste os corpos como palhaços, arromba duas lojas, não rouba nada, forja uma carnificina, grava uma lenda idiota e liga pra segurança daqui de um orelhão, informando o que fez.


— E pensar que podia ser ainda pior. Quer dizer, as portas do shopping ficaram a noite inteira abertas, imagina se alguém entra para saquear essas lojas granfinas?


O capitão fez um gesto vago, afastando mais essa chateação hipotética. Depois, indicando novamente os cadáveres com o queixo quadrado:


— Qual a causa da morte?


— A princípio, inalação excessiva de triclorometano.


— Diabo, Nascimento, fale em língua de gente!


— Clorofórmio, capitão. Ou lança-perfume, como é mais conhecido. Encontramos latas do composto no chão da sala de monitoramento das câmeras de segurança, além de outras contendo óxido nitroso.


— Gás do riso, não é? — perguntou o capitão, pois lembrava-se muito bem da polêmica recente no alto escalão da Polícia Militar sobre o uso do composto que causava contrações musculares involuntárias nos suspeitos, dando a impressão de que sorriam, e que podia levar à cegueira devido ao ressecamento da retina. Nascimento aquiesceu.


— Foi ele que deixou os rostos dos dezesseis desse jeito — completou.


— Certo. Mas existe alguma outra linha de investigação para a causa da morte?


— Positivo. Veja bem, o assassino parece ter acionado os sprinklers desta sala, o chão ainda estava um pouco encharcado quando chegamos. E, se o senhor olhar lá no alto, há um cabo de alta tensão desencapado encostando no piso. Foi retirado da fiação do ar-condicionado.


— Como, choque elétrico?


— Fulminante. Isso explicaria os olhos virados e as fezes em alguns cadáveres, pois a eletricidade demasiada torna o corpo humano incontinente.


— Jesus...

Os dois policiais quedaram em silêncio. Os flashes das câmeras periciais enchiam a sala de luz e cliques.

— Qual o nome do filme que era exibido aqui?


— Aí é que está a ironia, capitão. Segundo o informativo na bilheteria, o filme era uma comédia boba intitulada “A Última Risada”.


— E foi mesmo... Bem, eu vou até lá embaixo ver como anda a busca por mais pistas. Continuem trabalhando, daqui a pouco chega a imprensa e os familiares e vão ver a dificuldade que é...

E o homem interrompeu a frase na metade, fitando assustado a entrada vazia da sala.


— O que houve, capitão?


— Bobagem... — disse, esfregando os olhos. — Por um instante, me pareceu ter visto um palhaço em pé na, porta...

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Palhaços Macabros — A Última Sessão

Conto de terror dividido em quatro partes. Eis as duas primeiras.

I
Não se pode dizer que Hugo possuía ascendência muito inteligente. Tome-se como exemplo o caso de seu bisavô, que ficara famoso ao apresentar como álibi num tribunal do século XIX o fato de não poder ter tomado partido do crime investigado porque, no exato momento em que aquele ocorria, ele assaltava a mansão vitoriana de uma conhecida família aristocrata, do outro lado da cidade. E deve mesmo ter sido o fantasma cinzento do velhote que pousou ao ombro do garoto, quando este foi o único na sala de cinema a não entender a piada final da comédia a que assistia, envolto em sonolência, nos últimos 90 minutos.

“Dane-se”, pensou, com um peteleco no copo vazio de coca-cola.

Os créditos finais mergulharam a sala na penumbra, alguns se ergueram para ir embora e outros tantos continuaram sentados, ainda rindo. Se não fosse só a imaginação de Hugo, um desagradável odor de fezes impregnava o lugar. Ele seguiu a pequena procissão guiada pelas luzes vermelhas demarcando os degraus, sem conseguir deixar de culpar-se por ter dormido durante a sessão. Tudo bem que o filme não primara pelo “humor inteligente”, como o trailler havia sugerido, mas se a distração oferecida pelo pagamento de cinco reais fosse cair no sono, era melhor ter ido direto para casa, onde poderia fazê-lo gratuitamente. Ainda bem que ao menos conseguira despertar antes do final, graças a um curioso choque espasmódico concedido, ele supunha, pelo subconsciente, receoso de deixá-lo sozinho na sala de projeção após o término da película.

Os comentários alegres, críticas superficiais e piadas extraídas da própria comédia eram, claro, o assunto predominante entre aqueles que, ao contrário de Hugo, não haviam ido ao cinema desacompanhados. Fora isso, o shopping estava imerso na quietude peculiar que só quem já pegou a última sessão ou uma pré-estréia pouco aguardada conhece. Escadas rolantes paradas, refrigeradores de ar desligados, luz atenuada, praças de alimentação desertas, lojas e restaurantes fechados — sempre interessante notar a calmaria fugaz de um mar que permanecia a maior parte do tempo revolto, quase hostil.

No terceiro piso, dispersão parcial rumo aos banheiros vazios. No térreo, mais pés divergindo quanto à saída que melhor lhes convinha: classes A e B rumaram para o estacionamento; C, D e daí por diante seguiram na direção do ponto de ônibus defronte ao shopping. Todos, no entanto, receberam a mesma resposta indiferente das portas magnéticas, que normalmente se abriam ao menor sinal de aproximação humana.

— Quê que há com essas portas?
— Aquela também está fechada?
— Como assim, “fechada”?
— Significa que não abre, gênio.
— É brincadeira...

No entanto, como o leitor mais perspicaz já terá deduzido, não era. Em poucos minutos, instalou-se a inquietação:

— Onde está o pessoal da segurança? — indagou um rapaz magro, cabelo estilo militar, espiando ao longe por cima do chafariz central.

— Verdade — ponderou uma adolescente de uniforme escolar, acompanhada do namorado musculoso e com pelo menos o triplo da idade dela — Eles sempre ficam esperando na saída, a essa hora...

— Quem sabe não perceberam que a sessão terminou? — arriscou uma mulher de ar ratinheiro, girando irritantemente as chaves do carro entre os dedos.

— Mas, não sei se vocês repararam, não havia nenhum funcionário lá em cima, também — lembrou o namorado musculoso. — Quer dizer, sempre fica alguém para abrir a porta da sala, quando acaba o filme.

— Coisa estranha...

Hugo acompanhava o suplício de seus colegas com distante solidariedade. Ao contrário de muitos ali, não tinha hora para chegar em casa, muito menos pressa. Até gostava dessas pequenas surpresas do cotidiano, pois firmavam entre completos desconhecidos laços que, embora efêmeros, eram quase sempre muito divertidos. Só para ter o que fazer, puxou o celular do bolso. Estranhamente, o aparelho não ligou, embora Hugo tivesse certeza de que a bateria estava carregada quando chegou no shopping.

— Licença, você tem horas aí? — perguntou a um garoto que permanecia no limiar da indignação geral. Mas também o celular deste não ligava, e nem o do próximo a quem perguntou, e nem o do outro, e o do outro. Por fim, chegou-se à aflitiva conclusão de que nenhum aparelho de telefonia móvel estava funcionando.

— Eu vou lá em cima procurar esses funcionários, que acham que não temos mais o que fazer — disse a mulher das chaves, no que foi apoiada e seguida por boa parte do grupo. Hugo esperou. Algo naquilo tudo começava a preocupá-lo. Só não podia saber a proporção que as coisas ganhariam, depois do que sucedeu a seguir.

A comitiva da busca por respostas nem teve tempo de chegar à escada rolante desativada mais próxima. Gritos assustadores acrescidos de passos mais que apressados ecoaram do terceiro piso para o segundo, do segundo para o primeiro e dali para o térreo. Três garotos, um homem e duas meninas desceram pelos degraus estáticos em fuga desabalada. Estavam pálidos, trêmulos, e só pararam ao serem abordados pelo olhar de medo e dúvida nos rostos dos civis que já sofriam com a angústia das portas trancadas e celulares desligados.

— A gente precisa dar o fora daqui! — aconselhou um dos garotos, quase gaguejando.

— Não dá, as portas estão trancadas — alguém explicou — O que houve lá em cima?

Os seis do terceiro piso se entreolharam com o devido choque individual acentuado. Foi o homem quem informou, com uma voz teatralmente gutural, o que nenhum deles queria ouvir:

— Tem cinco seguranças esquartejados no banheiro masculino, gente.





II


Era a primeira vez em muito tempo que o sanitário masculino do terceiro piso recebia a visita de outras mulheres, que não as faxineiras do shopping. A ocasião, é verdade, não poderia ser menos lisonjeira, embora não se pudesse acusar o autor da tétrica cena que todos agora presenciavam, estarrecidos, de ter pecado pela falta de originalidade: os cadáveres dos funcionários haviam sido completamente despidos (uniformes e roupas íntimas achavam-se cuidadosamente dobrados e empilhados a um canto), fatiados com precisão cirúrgica nas articulações e os pedaços, à primeira vista, espalhados aleatoriamente pelo piso imaculado do local. Sob análise pouco mais criteriosa, porém, notou-se que estes justapunham-se de modo a formar uma única palavra, designando exatamente a ação menos provável de ser executada por qualquer pessoa naquele banheiro, viva ou morta — “SORRIA”.


Outro ponto a constar a favor do profissionalismo do assassino era a sua, por falta de termo mais apropriado, higiene. Não havia sequer uma gota de sangue para macular o pavimento ou as paredes brancas do lugar. De algum modo horripilante, mas eficaz, todo ele fora extraído e depositado num galão de água ordinário, que jazia equilibrado precariamente sobre um mictório do lado oposto à cena. De 20 litros suportáveis pelo recipiente, o fluído vermelho ocupava dois terços, mais ou menos.


As reações frente a semelhantes eviscerados são quase sempre previsíveis, se você não cursou medicina ou coisa que o valha. (Os três garotos e uma menina que se abstiveram de examinar a cena do crime e ofereceram-se para testar as saídas de emergência que o digam.) Ruídos de náusea, evocação da entidade abstrata melhor posicionada na hierarquia religiosa de cada um, mãos que cobrem bocas. Pularíamos esta parte, não fosse o debate elucidativo que sucedeu a idéia infeliz de Hugo em perguntar algo sumamente idiota a um dos adolescentes que primeiro encontraram os mortos:

— Vocês colocaram os pedaços desse jeito?

— Claro que não! — indignou-se o menino — Que idéia!

— A gente precisa chamar a polícia, pessoal — sugeriu alguém.

— E como faremos isso, se as portas estão trancadas e os celulares não ligam? — retorquiu a mulher das chaves, seguramente a última pessoa que se suspeitaria adepta do pessimismo precipitado.

— Isso é o de menos, querida. Qualquer lixeira metálica dessas espalhadas pelos corredores serve como aríete...

— Não serve, não. — contrapôs outra adolescente. — O vidro de todas as portas foi reforçado em cinco milímetros com blindagem, depois do assalto ao shopping no ano passado, lembram?

Eles lembravam.
— Esperem, deve ter ficado mais alguém aqui dentro — conjeturou o garoto a quem Hugo perguntara as horas primeiro. — Cinco funcionários me parece pouco para um lugar tão grande...

— Não, não — desanimou logo o homem que encontrara os corpos — Vasculhamos tudo aqui em cima antes de decidir sair correndo daquele jeito.

— Bom, então vamos ter de arrombar uma loja, o alarme é ativado e a polícia vem de qualquer jeito.

— Vocês estão sendo precipitados. — lembrou o rapaz de cabelo algo militar —Quer dizer, olhem para esses corpos! Isso não é serviço de um psicopata amador. O cara que matou essa gente (se é que foi só um cara) deve ter tomado todas as precauções para não deixar sequer uma pista que leve até ele. Nem digital deve ter aí! Ou seja, se chamarmos a polícia agora, adivinhem quem serão os principais suspeitos?

— E você sugere o quê? Esperar sentado aqui até as faxineiras chegarem?

Aqui, não. Em nossas casas, o mais longe possível. Só precisamos saber se as saídas emergenciais estão de fato abertas e pronto: para todos os efeitos, somos simples civis que deixaram o cinema do shopping sem tomar conhecimento de que um crime bárbaro ocorrera no banheiro do terceiro piso.

— Brilhante. Só uma pergunta: o que pretende fazer com as imagens das câmeras de segurança, que certamente já filmaram a gente aqui?

— Amigo, se o cara que fez isso não desativou antes as câme...

— “Se”, “se”! Você trabalha em cima de hipótese...

— Ssssssshhhhhhhhhh! — Hugo interrompeu a discussão abruptamente.

— O que foi?

— Ouviram isso?
— Isso o quê?

— Espécie de chiado.

— Do que está falando?

— Ele tem razão, parece estática...

— Vem das roupas...

— Rapaz, cuidado pra não alterar a cena do crime, pelo amor de Deus!

Hugo caminhou cautelosamente até a pilha de vestes. Encontrou, então, o rádio transmissor de um dos guardas escondido no meio delas. A estática aumentava. Quase involuntariamente, pressionou um dos botões, mas antes que pudesse indagar se havia alguém do outro lado, uma gravação começou a ser reproduzida:


Os índios da extinta tribo Orkidawa, norte de Mato Grosso, acreditavam que as almas dos companheiros que perdiam a vida durante estágios de subconsciência — coma, sono ou transe — permaneciam eternamente presas à oca em que a morte se dera, além de assumirem para sempre as feições, vestes e adereços que acompanhassem seu corpo físico. Daí se sucede que moradias onde tais tragédias ocorriam fossem incineradas com o cadáver ainda dentro, pois, além da não complacência em enfeitar para sempre o corpo e, por conseguinte, o espírito de alguém que já se fora, havia a esperança de que este último pudesse ascender livremente para o outro lado, embora seu semblante houvesse se tornado tão assustador quanto o do invólucro carnal carbonizado.

21 pessoas morreram sob circunstâncias similares, neste shopping.
Em que suas almas terão se convertido?”


Demorou até alguém se atrever a quebrar o silêncio horrorizado.


— Então... Tem mais 16 funcionários mortos pelo shopping?

— Não é possível — redargüiu uma das meninas a primeiro ver a cena — Terça-feira é dia de pouco movimento, só ficam cinco fiscais de serviço, depois do fechamento das lojas.

— E como você sabe?

— É que... — ela baixou a cabeça — Meu pai trabalha aqui, de fiscal... E justo hoje é a folga dele.

O rapaz que perguntara pareceu envergonhado do tom acusador na própria voz.

— Sorte do seu pai.

— E azar o nosso. — sentenciou o garoto das horas — Quer dizer, alguém já fez as contas?

— Quais contas?

— Estamos em 12 no banheiro, e mais quatro procurando as saídas alternativas. Total, 16. O desgraçado na gravação usou o verbo no passado “vinte e uma pessoas morreram neste shopping”. Ou seja, ele já considera como fato consumado o nosso esquartejamento.

— Uma armadilha, é claro...

— Mais do que isso, colega. Um acerto de contas.

— Espere, agora você está exagerando...

Pensem! É só ter lido Agatha Christie ou assistido um pouco de C.S.I. para saber o que vem agora: descobrimos um podre escabroso em comum manchando nosso passado, esse maníaco igualitário encontra nossos arquivos secretos e, resolvendo bancar o justiceiro mascarado, nos mata um a um, aqui dentro.

— Meu Deus!

— Que horror!

— Cara, você está assustando elas!

— E acha que eu não estou assustado? Mato a última aula de geografia pra pegar um cineminha e acabo virando vítima de uma conspiração?

— Mas eu não tenho nenhum podre escabroso no meu passado — informou a mulher de rosto ratinheiro, pensativa. — Quer dizer, há o cachorro que atropelei na esquina da Getúlio com a 13 de Junho, semana passada, mas foi absolutamente sem intenção!

— Pessoal, vamos ser racionais — Hugo tomou a palavra depois de longo silêncio meditativo — Para o que o colega falou ser verdade, precisaríamos ter sido convocados ou atraídos, mesmo que sutilmente, a pegar justamente a última sessão de hoje. O que é ridículo, pois creio que todos (até você, amigo, como acabou de informar), viemos ao cinema por livre e espontânea vontade, certo?

Festival de concordâncias, algumas misteriosamente relutantes.

— Pronto, isso descarta definitivamente a hipótese do Poirot aqui. O assassino pode muito bem ter blefado nessa gravação, trancado as portas por pirraça e estar a quilômetros de distância, agora, em fuga. A menos que...

E Hugo hesitou em concluir o raciocínio tétrico que lhe viera à mente.

— Prossiga, Hastings — instigou o outro, sarcástico — A menos que...?

— Besteira. Teríamos percebido se alguém houvesse deixado a sala durante a sessão.

Você teria percebido?

Hugo encarou-o desconfiado.

— O que está insinuando?

— Me sentei duas poltronas à sua esquerda, amigo. Vi quando você acordou. Aliás, foi um pouco depois de eu mesmo ter acordado.

— Esperem aí, vocês também dormiram durante a sessão? Puxa, que coincidência, achei que fosse pela falta de café que eu tinha feito exatamente a mesma coisa...

— Eu também dormi!

— Acordei bem naquela cena em que...

— Pensei que fosse a única...


Sim, caro leitor. Todos haviam pegado no sono durante a comédia.


— É, pelo visto nosso “denominador comum” não estava num passado muito distante, afinal. E vovó Agatha volta a ser leitura obrigatória neste shopping.

— Com licença, meu jovem — começou o mais velho do grupo, tão pouco perspicaz quanto a maioria —, no que o fato de termos dormido durante a sessão implica mesmo?

— No raciocínio que o Hastings aqui não teve coragem de verbalizar, companheiros: o assassino é um de nós.



— Isso não pode estar acontecendo... — choramingou uma das meninas, sentando-se na borda de um urinol enquanto cobria o rosto com as mãos. — Eu nem queria ter vindo aqui hoje...

— Mas veio, amiga — disse o rapaz, inflexível — E é tão suspeita quanto os demais, pois pode muito bem ter mentido ao dizer que dormiu no filme, para acobertar alguém ou a si mesma.

— Cara, se falar de novo desse jeito com a minha namorada, eu juro que afundo a sua cara no soco.

— Pois faça isso, Conan. Daí vou saber quem ela tentava acobertar.

— E os outros quatro? — inquiriu Hugo, lembrando-se subitamente.

— Quem?

— Os quatro que foram testar as saídas de emergência. Não sabemos se eles dormiram na sessão. Talvez se perguntarmos a cada um separadamente, assim, como quem não quer nada, eles entreguem se viram alguém deixando a sala antes que o filme tivesse acabado.

— Supondo, claro, que o próprio interrogado não seja o assassino.

— É um risco que temos de correr. De qualquer jeito precisamos investigar a demora, já era para estarem de volta há um tempão.

— Bem, se encontraram a saída de emergência aberta, capaz de terem dado no pé.

— E eu vou seguir o exemplo deles, pode ter certeza...


Assim, doze pares de pés rumaram novamente para os saguões ermos do segundo andar. Uma aura de medo e desconfiança mútua pairava sobre o grupo, impedindo que trocassem entre si construções mais complexas que monossílabos, enquanto a busca pelos demais ia mostrando-se inquietantemente infrutífera a cada piso vencido. A angústia só teve fim quando, já no térreo, encontraram os quatro dispersos encolhidos ao pé da escada de mármore dando para uma das saídas do shopping, recostados numa grossa pilastra e parecendo aflitos.

— O que aconteceu, vocês sumir... — alguém começou, mas foi imediatamente silenciado pelos dedos indicadores do quarteto, posicionando-se cortando as bocas na vertical, num gesto de reconhecimento imediato: “quietos!”

— Temos uma notícia má e outra péssima — revelou a única menina do segundo grupo, depois que todos se postaram devidamente ocultos pela pilastra.

— Corte o drama! — aparteou “Poirot”.

— A má é que as saídas de emergência estão tão abertas quanto as principais.

— E a péssima? — Hugo perguntou, temendo a resposta.

— Temos companhia.

E a garota apontou as portas magnéticas além da pilastra que os escondia. Hugo só precisou do olho direito para ver os cinco palhaços de feições demoníacas, vestidos com túnicas brancas, olhos horrivelmente leitosos e facas manchadas de sangue nas mãos, espiando-os pelo lado de fora do shopping.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Um Ladrão na Biblioteca

Texto retirado porque... bem, porque eu me envergonho dele.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O Mistério da Caixa

© 2009 by Levi Horn


Era uma tarde como toda tarde aqui na minha cidade. Eu estava retornando do meu colégio com uma amiga. Sou bem magrinha para a minha idade, cabelos vermelhos e pele clara. Não sou muito popular no meu colégio, alguns me acham até estranha, mas eu não ligo muito. Tendo pelo menos um amigo eu estou feliz. O nome da minha amiga era Camila, ela era quase idêntica a mim, achavam até que nós éramos irmãs. Enquanto andávamos pela rua eu vi, não muito longe, um homem todo vestido de negro. Achei aquilo estranhíssimo, chamei a atenção de Camila para que ela notasse também, apesar de estar longe vi sua fisionomia muito bem. Era muito pálido e tinha cabelos brancos, bem velho. O homem estava apoiado em uma cerca, próxima a um terreno abandonado, tentava esconder algo por entre as folhas. Quando percebeu a nossa aproximação, soltou o objeto e correu, na direção oposta a nós.

— Que será que ele escondeu ali? — perguntou minha amiga curiosa.
— Sei lá.
— Vamos ver?
— Lógico.

Andamos mais rápido e chegamos à cerca do terreno abandonado, tratamos de nos apressar, pois já estava ficando noite e as redondezas eram muito perigosas durante a escuridão. Remexemos as plantas e encontramos, ao que parecia ser, uma caixa. Não a olhamos muito bem, nos dirigimos para casa e resolvemos vê-la somente quando chegássemos lá. Não sabíamos no perigo que estávamos nos metendo. Chegando em casa, Camila foi para a minha, pois sua mãe só chegava mais tarde. Subimos rapidamente para meu quarto. Era bagunçado, nem parecia quarto de menina, mas eu me sentia muito à vontade ali. Tomamos um banho rápido e fomos investigar a caixa.

— Será que fizemos bem em pegá-la?
— Não sei.
— E se aquele homem estivesse lá pra escondê-la? E se depois ele voltar?
— Acho que o sujeito estava mais com cara de que queria se livrar dela — eu disse, indo pegar a mochila onde a caixa estava guardada.
— Se estava, ele devia ter um bom motivo para isso, não é?
— Acho que sim — respondi sacudindo os ombros. Abri a mochila. Não estava lá.
— Sumiu!
— Como?
— A caixa desapareceu.
— De que jeito?! Ela não saiu andando!
— Ela não está aqui dentro. Eu lembro de tê-la colocado aqui.
— Olha direito.
— Eu já olhei, não está.

Ficamos nos observando por alguns instantes, até que percebi, atrás de Camila, na minha estante, algo que não deveria estar lá. A caixa.

— Está ali — apontei. Camila virou-se e ficou pálida. Como a caixa fora parar ali?
— Muito engraçado — virou-se ela — querendo me assustar não é? Perdeu seu tempo. Foi você quem mudou a caixa de lugar, não é?
— Não! Eu nem toquei nela desde que chegamos.
— Mentirosa!
— Não é mentira!
— Então como ela foi parar em cima da estante?
— Eu não sei.

Silêncio novamente. Corri e peguei a caixa, trouxe-a e sentamos na cama. Era toda preta, não havia nada, exceto um único símbolo, um sol. Eu vira aquele símbolo antes em uma carta de tarô antigo. Minha mãe me ensinara a tirar as cartas, mas eu nunca entendera direito, só sabia o que cada uma significava.

— Que esquisito. Não tem fechadura — disse Camila virando a caixa de ponta cabeça.
— É mesmo. Será que essa caixa era alguma magia ou coisa perecida. Aquele homem era muito estranho, todo de preto, será que era feiticeiro.
— Sei lá.
— Além do mais esse símbolo — mostrei o sol — é de tarô.
— E o que significa?
— Prisão ou liberdade. São opostos e dependem muito da ocasião e do que se quer. Não sei o que significa, neste caso.

Um friozinho percorreu minha espinha. Foi quando a primeira coisa estranha aconteceu. A porta do banheiro que estava aberta fechou-se rapidamente, pensamos que fosse o vento, mas a janela estava fechada, a luz do teto começou a piscar de um modo muito esquisito. Camila levantou da cama num pulo e correu na direção da porta, mas esta se fechou também.

— Juli, o que ta acontecendo.
— Deve ser alguém brincando conosco.

A luz agora demorava a acender e enquanto ela estava apagada ouvíamos umas vozes esquisitas que davam muito medo. Eu corri para abraçar a Camila e ficamos juntas, foi quando uma voz mais gélida soprou no meu ouvido as seguintes palavras.

— Cuidado! Morte!
A porta do meu quarto abriu-se e a luz voltou ao normal. Mamãe era quem abrira e ficou assustada em nos ver abraçadas, quase chorando.
— O que aconteceu?
— N-n-n-nada.
— Eu vou encontrar com seu pai no shopping. Não saiam de casa. Camila, eu falei com sua mãe e ela disse que você pode dormir aqui esta noite, Jorge e eu voltamos antes das doze.
Mamãe saiu e nos deixou. Percebi que ainda estávamos abraçadas.
— O que foi aquilo?
— Não sei, mas não quero ficar aqui, vai que acontece de novo.
Descemos rapidamente as escadas, não queríamos permanecer no quarto nem mais um segundo. Trouxemos a caixa conosco para investigá-la melhor, sem perceber que fora ela a causadora de tudo.
— Onde vamos dormir?
— Aqui na sala mesmo, se mamãe chegar e nos encontrar aqui, dormindo, não nos acordará.
— E como vamos dormir? Sem cobertor?
— Tem uns reservas lá atrás. Vamos assistir TV.
Sentamos no sofá. Camila olhou a caixa de canto de olho.
— Veja, tem um outro símbolo.
— Não me lembro de tê-lo visto — disse eu.
— Nem eu. Você consegue entender?
— Significa, caos.
— Eu, hein. Não sei por que, mas esta caixa me dá uma sensação horrível.
— A mim também. Acho melhor a gente se livrar disso, talvez seja um sinal de que não devemos ficar com ela.
— Talvez...

Assistimos TV e acabamos adormecendo. Sonhei esta noite. Foi um sonho muito horrível. Eu estava em casa com Camila, assistindo TV. Assim como fazíamos antes de dormir. Ela virava pra mim e eu não via seus olhos, estavam vazios. Sua boca estava costurada e seu pescoço cortado à faca.

— Cuidado! Morte! — escutava várias vezes. Acordei ofegante, abri meus olhos e encontrei a escuridão. Olhei para meu lado e Camila estava lá, com seus olhos e com sua boca liberada. Que susto horrível. Encostei minha cabeça no travesseiro e voltei a dormir. Estava com muito medo de sonhar novamente, mas acabei cochilando. Não tive o tal sonho de novo.
Na manhã seguinte, Camila foi para a casa dela e eu fiquei fazendo minhas tarefas escolares para aquela tarde. Eu e Camila havíamos combinado de nos livrar da caixa quando estivéssemos voltando do colégio. Nós a deixaríamos no mesmo lugar onde encontramos, assim se aquele homem esquisito quisesse reavê-la, estaria lá, como se nunca tivesse saído. Quando chegou a tarde eu peguei a caixa para colocá-la na bolsa. Foi então que notei que mais um símbolo havia aparecido. Significava perseguição. Eu senti um calafrio e empurrei a caixa bolsa adentro. Sai muito preocupada de casa, uma caixa que fazia aparecer símbolos não era normal. Aquela tarde eu nem prestei muito atenção na aula e acho que a Camila também, pois ela não parava de olhar para mim.

Quando o último sinal tocou, juntamos nosso material e corremos para casa, lembrando de passar pelo terreno abandonado pra soltar a caixa lá. Ao chegar bem próximo do local, não havia mais ninguém na rua exceto a gente, e o tremor causado pelo medo era inevitável. Nos aproximamos do terreno e colocamos a caixa bem escondida entre as folhas. Foi quando surgiu, de repente, do terreno, o homem de preto. Camila soltou um grito horrendo e nós começamos a correr desesperadamente. A caixa ficara no terreno. O homem não parava de nos seguir, então eu gritei bem alto:

— Sua caixa está lá no terreno.

Contudo ele não parou de nos perseguir, desistiu segundos depois quando encontramos um grupo de pessoas conhecidas. Corremos para casa e entramos, desesperadas. Mamãe, ao nos ver, ainda abriu a boca para perguntar, mas não deu tempo, corremos para o quarto de hóspedes e ficamos sentadas próximas à janela esperando ver o tal homem pelas redondezas. No entanto, não vimos nada. Não fomos para meu quarto, pois o medo de algo acontecer lá ainda existia.
— Você viu? Eu sabia! Ele estava esperando a gente voltar para nos pegar! Ainda bem que nos livramos da caixa. Com certeza ele vai voltar e pegar ela.

— É o que eu espero — disse eu, enxugando o suor da testa. Peguei minha mochila para retirar alguns livros extras que havia trazido. Quando a abri senti uma pontada no meu coração.
— Veja! A caixa!
— O quê?
— A caixa está aqui! — repeti, tirando-a de dentro da bolsa.
— Mas você não tinha jogado ela?
— Eu joguei, lembro disso.
— Essa caixa tem alguma coisa. E não é do bem.
— Ela parece não querer que nos livremos dela, e ainda fica aparecendo uns símbolos. Veja apareceu outro.
— O que é agora.
— Morte.

Eu fiquei toda arrepiada. Como se livrar daquilo, ainda mais com um homem louco nos perseguindo? Era sexta-feira e na manhã seguinte eu e Camila iríamos acampar sozinhas perto de casa. Era apenas um quilômetro de distância e tinha um laguinho ótimo para se banhar. Nós podíamos jogar a caixa lá dentro e adeus preocupação.

Como estávamos enganadas...

Novamente algo estranho aconteceu. Desta vez, enquanto nós estávamos conversando no quarto, a luz do banheiro se acendeu repentinamente, eu levei o maior susto da minha vida. Começamos a ouvir a água da banheira enchendo-a. Como ela se ligara? Eu me levantei e comecei a caminhar naquela direção. Não sei de onde retirei tanta coragem. Segundos depois, cheguei à porta do banheiro. Olhei na direção da banheira e gritei, gritei o quanto pôde. Camila, ao me escutar, gritou também. Eu via a banheira toda cheia de sangue e uma mão morta no chão do banheiro, foi horrível. Sai rapidamente do banheiro e minha mãe entrou no quarto preocupadíssima.

— Que foi?
— A banheira — eu disse chorando. Ela foi até o banheiro e voltou com uma cara assustada.
— Não tem nada lá.
— O quê? Não esta cheia de sangue?
— Não. De onde você tirou esta idéia, garota?
— Não tem uma mão no chão do banheiro?
— Não. Juliana…

Eu me levantei e corri para lá. Realmente não havia nada. Nenhuma gota de sangue ou vestígio de que ali houvesse estado uma mão morta, o banheiro até estava limpo e seco. Novamente fomos obrigadas a sair do quarto por motivos inexplicáveis. Camila ia dormir lá em casa de novo, pois nós sairíamos bem cedo para acampar, dormiríamos uma noite lá e só voltaríamos no domingo à tarde. Neste curto espaço de tempo, entre o nosso sono e o acampamento, nós, de vez em quando, olhávamos a rua para ver se o homem estava lá, mas ele não estava. No outro dia eu e minha amiga, exatamente às sete horas, partimos para o nosso acampamento com duas mochilas cheias de comida pronta para a digestão. Não nos daríamos o trabalho de cozinhar. Chegamos no lugar em poucos minutos, sentamos em baixo de uma árvore à beira d’água e começamos a conversar.

— Tomara que aquele homem não apareça por aqui — disse Camila sem ter outra coisa para falar.
— Você tinha que me lembrar? — eu reclamei.
— Vamos logo jogar aquela caixa fora.

Eu peguei-a a caixa e novamente um símbolo novo aparecera. Significava mal. Agora os símbolos haviam ocupado quase todos os lados da caixa, faltava apenas um único lado e eu temia bastante o que poderia aparecer. E o pior me veio à cabeça, percebi que a maioria das vezes que um símbolo aparecia algo estranho acontecia, as luzes, o sonho, o banheiro. Será que havia alguma ligação? Não tinha certeza.

— Meu Deus, agora só falta um lado. O que será que vai acontecer se ele aparecer? — perguntou Camila.
— Não sei. Vamos jogar a caixa fora.
— Agora mesmo.
Eu segurei a caixa firme na mão e joguei-a o mais longe que pude, para dentro do lago. Quando nos viramos a caixa estava lá, ao pé da árvore.
— O que é isso? Essa caixa é do mal!
— Vamos sair daqui. É melhor voltarmos para casa.
O céu começou a se encher de nuvens. A pequena floresta que teríamos de enfrentar para chegar em casa estava escura.
— E agora? Como a gente volta, eu não quero ficar aqui com essa caixa estranha.
— Vamos voltar mesmo assim — eu disse determinada a sair dali.
— Tem certeza? — perguntou Camila receosa.
— Vamos!

Eu peguei minha mochila e ainda vi a caixa ao pé da árvore. Corremos o máximo que nossas pernas puderam. Corremos até cansar. Estava demorando muito para chegar, que eu soubesse a floresta não era tão grande assim. Corremos mais um tempão, não havia fim.

— Por que não estamos chegando?
— Eu não sei — eu gritei quase chorando. — Mas acho que isso tudo está interligado.
As vozes de outrora começaram a soar novamente, mas desta vez elas não estavam sozinhas. Vultos, muito parecidos com panos translúcidos, apareciam e tocavam-nos friamente. Ao invés de falar aquelas palavras horríveis eles diziam num tom gélido e arrastado:
— Vocês estão perdidas...
Um deles enroscou-se na minha perna e eu percebi que eles tinham rostos. Nós não parávamos de correr. Tudo aquilo estava nos assustando muito, não conseguíamos parar de correr, era como se nosso corpo estivesse no controle.
— Ó meu Deus, eu quero uma saída. Juli o que está acontecendo?
— Eu acho que tem a ver com aquela caixa. Toda vez que aparece um símbolo algo estranho acontece.

Neste momento começamos a ver uma luz muito grande perto de nós. Corremos naquela direção e chegamos a um grande vulto branco. Brilhava muito, os outros continuavam a girar perto de nós. O vulto brilhante virou-se e nós vimos seu rosto. Era um fantasma desfigurado. Com um grito tenebroso o vulto voou na nossa direção e então eu desmaiei. Acordei com um radiante sol banhando meu rosto. Estava próxima à árvore do lago. Como eu voltara até ali? Não sabia. Camila estava ao meu lado. Eu a acordei. Com uma cara de apavorada, ela falou:

— Eu tive um sonho muito estranho e você estava nele.
— Tinha vultos e vozes?
— Sim!
— Também sonhei.
— Será que era sonho mesmo?
— Sei não, acho melhor irmos para casa. Talvez estaremos mais seguras lá.
— Cadê a caixa?
— Desapareceu.
— Assim é melhor...

Corremos pela pequena floresta e encontramos alguém. Era o tal homem. Estava mais feio do que da outra vez. Sua pele pálida estava bem mais branca e seus olhos eram circundados por negras olheiras, o que lhe dava um aspecto cadavérico.

— Fiquem calmas, eu não vou machucar vocês.
— O que quer? — eu perguntei.
— O que vocês fizeram com a caixa?
— Que caixa — fingiu Camila.
— A caixa que pegaram no terreno abandonado. Não podiam ter feito isto, ela é amaldiçoada. Assim que o último símbolo aparecer ela vai pegar a alma de vocês e vocês vão morrer em poucos dias.
— Como você sabe disto?
— Por que aconteceu comigo.
— E como você ainda na morreu?
— Não sei, mas acho que foi porque vocês pegaram a caixa antes de eu morrer.
— Quer dizer que para nós não morrermos, nós teremos que passar a caixa para frente?
— É.
— Isso é crueldade. Condenar outra pessoa à morte, e se ela não souber o que fazer?
— É o único jeito.
— Mas nós a perdemos.
O homem saiu correndo sem dar explicações. Voltamos para casa e mamãe estranhou o fato de termos chegado antes do previsto.
— Por que voltaram?
— Não nos sentimos muito bem lá.

Subimos para meu quarto, pois sabíamos agora o que havia causado tantos problemas. Ao entrar no quarto, nos deparamos com a pior cena de nossas vidas. Estava todo destruído, e sujo de sangue. No espelho estava escrito em sangue, “ Seu sangue será derramado”. No chão haviam pegadas vermelhas vindas do banheiro, e, sobre a cama, a caixa, sendo segurada pela mão morta que vira anteriormente.

— Vamos pegar, nós temos que nos livrar dela logo.

Eu entrei, seguida por Camila, que estava muito assustada. Um barulho horrível veio do banheiro e um corpo cortado ao meio saiu arrastando suas tripas de lá. Sem um dos braços, e sem cabeça. Eu quase desmaiei, peguei a caixa e corremos para a porta. Esta se fechou com estrondo. Nós começamos a gritar, mas não escutávamos ninguém subir as escadas. Eu estava com a caixa na mão quando o último símbolo apareceu e com um clique ela se abriu, era outro sol. Vários vultos brancos começaram a sair e eu gritava mais do que nunca. Foi quando o meio corpo chegou a Camila e segurou a sua coxa com força. Todos os vultos voaram na direção dela e garras foram enterradas em seu corpo. Eles começavam a puxar, e aos poucos um vulto brilhante começou a sair dela, estavam retirando sua alma, que não queria ceder. Era como se ela não quisesse ser retirada e fazia muita força para ficar. Eu estava imóvel, não sabia o que fazer enquanto minha amiga gritava pela sua vida. Corri na direção da janela e vi uma mulher passando pela rua. A rua ficava bem abaixo da minha janela. Joguei a caixa e por sorte caiu bem na frente dela. Escondi-me. A mulher pegou a caixa, olhou para os lados e enfiou-a na bolsa. Meu quarto começou a tremer. Ficou escuro e quando a luz se abriu tudo estava normal. Eu corri a abraçar Camila. Estava tudo bem, tudo voltara ao normal.

Tentamos encontrar a mulher que pegara a caixa, porém, infelizmente, não conseguimos. Estava condenada. Eu fiquei muitos dias sem sair de casa. Camila também. Esta história aconteceu comigo há uns seis meses e nunca esquecerei. Por toda a minha vida. E uma coisa eu posso garantir, isto aconteceu de verdade comigo e eu aprendi minha lição.

Contado por Juliana Fernandes, residente no Brasil, 15 anos de idade.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009