quinta-feira, 12 de março de 2009

O Último Poema

© 2009, by Gustavo Pierobom

Na penumbra do minúsculo barraco o homem enfrentava mais uma noite de insônia, ao som das goteiras que inundavam o lugar ele lembrava-se da sua juventude, com o rosto desfigurado devido a um tombo quando bebê, era descriminado pelas tutoras do orfanato. “Eu já falei pra você se comportar sua aberração!” era o que berrava a mulher enquanto espancava a criança com um cabo de aço. Embora fosse muito inteligente, abandonou a escola na segunda série, não agüentava mais a inimizade e os deboches dos colegas, “Anormal”, “Aberração” eles zombavam o dia todo. Aquilo foi a gota d’água, certo dia fugiu da escola e nunca mais voltou, nem para ela e nem para o orfanato. A vida na rua para uma criança de oito anos não era fácil, ainda mais com seu rosto daquele jeito, ao pedir esmolas no sinal era olhado com desprezo, por isso a recompensa era menor ou quase sempre inexistente, era descriminado pelos outros moradores de rua que não o aceitavam em seus grupos, muitas vezes quando conseguia algum dinheiro para comer, era roubado pelos garotos mais velhos. Sobreviva tomando água da chuva e juntando restos de comida nas lixeiras de restaurante. Certa vez achou um velho dicionário no lixo, sem mais nada para fazer passava noites e noites à luz dos postes lendo várias e várias vezes aquelas milhares de palavras.
O barulho fez com que o homem fosse arrancado das suas tristes lembranças, era o trem passando novamente, seu barraco tremia todo e os ratos corriam pelo local.
Seis da manhã, chegava a hora de sair novamente, cuidando carros para ganhar alguma moeda, pedindo esmolas aqui e ali, assim ele sobreviva a mais um dia. Já era noite quando voltava para seu barraco, com o pouco dinheiro que ganhava comprava aguardente e cigarros, não era mais necessário comprar comida, após tantos anos comendo lixo ele já havia se acostumado. Seus pés descalços e cheios de feridas doíam no asfalto gelado pelo frio do inverno.
Em seu barraco escuro somente tendo os ratos e baratas como companhia, ele deitava na sua cama feita com alguns sacos de areia e entre um gole de aguardente e uma baforada de cigarro escrevia seus poemas, usava com destreza as palavras que aprendera no velho dicionário, certa vez pensou em tentar vender seu trabalho, mas novamente fracassou. Quem iria comprar pedaços de jornal com alguns rabiscos de um mendigo deformado? Ninguém! “Ninguém”, esta era uma palavra que ele conhecia bem o sentido, ninguém o ajudava, ninguém o notava, ninguém olhava por ele. Ninguém!
Ele estava cansado daquilo tudo, além da sua poesia não tinha mais nada, cada dia era mais difícil e dolorido de sobrevier sozinho naquela selva de pedras, então ele desistiu.
Aquele dia foi diferente, ao invés de usar seu dinheiro pra comprar o aguardente e os cigarros, ele foi até uma papelaria (claro que não o deixaram entrar, foi atendido na porta) comprou uma cartolina branca e uma caneta dourada, aquele seu ultimo trabalho necessitava um material especial.
Chegando no seu barraco, após algumas horas fazendo rascunhos nos seus velhos jornais ele escreveu seu ultimo poema, demorou mais uma hora para que transferisse as palavras para a cartolina, usando a caneta dourada ele escreveu cuidadosamente as letras com a maior perfeição que sua caligrafia permitia. Finalmente estava pronto... Seu poema de despedida.
Usando seu velho cobertor ele recortou algumas tiras e as transformou em corda, empilhou alguns sacos de areia em baixo de um caibro, subiu, fez o laço e pôs em volta do pescoço, após um minuto de reflexão algumas lágrimas percorreram seu rosto, ele chorou por não ter por quem chorar. Sua vida foi infiel a ele até mesmo na hora da morte, quando pulou ao invés da corda quebrar seu pescoço de uma só vez, o asfixiou lentamente até arrancar seu ultimo suspiro.
Foi um mês depois que um funcionário da prefeitura que procurava focos do mosquito da dengue pelo subúrbio encontrou o barraco, antes de entrar ele sentiu o forte cheiro que vinha de dentro do local, ao entrar deparou-se com um corpo podre e comido pelos ratos balançando na forca. Quando recuperou-se do choque ele examinou o local e encontrou um saco de lixo com vários recortes de jornais e de papelão, ali devia conter milhares de poemas escritos durante toda uma vida, observando melhor encontrou a cartolina já amarelada, nela continha as seguintes palavras...

“Adeus...
Adeus ao carro que nunca dirigi;
Ao livro que nunca li;
Ao terno que nunca vesti;
À fome que eu senti.
Adeus...
Adeus à mãe que não me criou;
À mão que não me amparou;
À tristeza que me tomou;
À solidão que me abrigou.
Adeus...
Adeus à beleza não admirada;
À testa não beijada;
À pele não acariciada.
À felicidade não desfrutada.
Adeus...
Adeus á doença;
Ao que não compensa;
Ao que não fez diferença;
Ao que não tive crença.
Adeus...
Adeus ao que não foi dito;
Ao tempo perdido;
Ao homem agredido;
Ao amor não correspondido.
Adeus...
Adeus ao que não perdoei;
Ao beijo que não dei;
Ao lugar que não cheguei;
A tudo que odiei.
Adeus...
Adeus a quem não notou;
Ao que me magoou;
Ao que não me ajudou;
A quem não me amou.
Adeus...
Estou partindo ao encontro
do Deus que não me abençoou
ou do Diabo que me condenou.
Adeus.”

Assinado: O homem que não esteve aqui.

segunda-feira, 9 de março de 2009

16 Vidas

© 2009, by Gustavo Pierobom






Como de costume, todas as quintas feiras à noite, o aposentado Mark Stone, 68 anos, encontrava com seus dois amigos Jack e Stuart em um bar da zona leste de Nova Yorque, para juntos assistirem ao jogo dos Yanques. Naquela ocasião a partida seria contra o Red Sox. Stone foi o primeiro a chegar no local.

— Boa noite, Marie – disse cumprimentando a garçonete. – Vamos vencer hoje?

— Claro Mark – respondeu a moça sorridente. – E os rapazes?

— Ah... Já devem estar chegando.

Stone sentou-se em uma das mesas do quase lotado bar, onde todos os olhares estavam direcionados para a televisão. Após alguns minutos de espera, onde sua única companhia foi uma long nek de cerveja escura, ele avistou seus amigos chegarem, porém, desta vez, Stuart trouxera com ele seu neto de 12 anos, Stone fez um aceno aos amigos os chamando à sua mesa.

— Como vai Mark? – perguntou Jack, estendo a mão.

— Bem. E vocês? Stuart, vejo que trouxe Mike para assistir ao jogo. Como vai, garoto? – perguntou colocando a mão sobre o ombro de Mike, que respondeu com um tímido sorriso.

Todos sentaram-se à mesa, o jogo havia começado e agora o único assunto eram os jogadores, tacadas e pontos. Os mais velhos bebiam cerveja, Mike refrigerante, o garoto usava o uniforme completo dos Yanques, mas, apesar de gostar muito de assistir aos jogos, não parava de observar uma tatuagem no antebraço esquerdo de Stone. Enquanto todos os demais freqüentadores do bar não tiravam os olhos da televisão, Mike ficava imaginando o que poderia significar aquele numero: 16, desenhado no corpo do amigo de seu avô. Seria o numero da camisa de algum jogador? Ou, de repente um número de sorte?
O menino, formulando diversas hipóteses na sua cabeça, nem notou o tempo passar, o jogo acabou, os Yanques venceram, e agora, com o término da partida, os três amigos seguiam sentados e entre uma cerveja e outra, debatiam diversos assuntos, até que o garoto Mike resolveu quebrar seu silêncio, intrometendo-se na conversa:

— Senhor Stone... O que significa essa tatuagem? – perguntou com curiosidade, apontando o “16”, desenhado no antebraço do velho.

— Bem... É uma longa história – respondeu o homem, surpreso, querendo fugir do assunto.

— Ora, Mark! Conte ao garoto – interrompeu Stuart.

— Isso mesmo, conte! – incentivou Jack
— Está bem seus curiosos, eu conto... Mas a próxima rodada é por conta de vocês.

— Ok, Mark, estamos ouvindo – concordou Stuart, fazendo um gesto para a garçonete trazer mais cervejas.

Mark Stone tomou um gole de cerveja e iniciou sua narrativa...

“Eu fazia parte da sétima companhia de salvamento e resgate dos bombeiros de Nova Yorque, e na nossa divisão havia um costume: quando um colega se aposentava, fazia uma tatuagem com o numero de pessoas que salvou durante sua carreira. Minha contagem começou em 1966, eu tinha 25 anos, era uma das primeiras vezes que eu saía numa operação de salvamento. Foi num prédio comercial na 5ª avenida. Quando chegamos no local a multidão na rua era imensa, bombeiros, policiais, ambulâncias, pessoas semi-carbonizadas sendo atendidas no meio da rua...
O prédio tinha trinta andares, e do décimo segundo para cima, estava tomado pelas chamas. Quando eu e mais três companheiros entramos no prédio, já havia várias equipes trabalhando nos resgates, nós subimos em direção ao décimo segundo andar, o hall das escadas já estava envolto pela fumaça. À medida que avançava, sentia cada vez mais o calor oriundo das chamas. Chegamos no patamar e nos deparamos com dois bombeiros de outra companhia tentando reanimar o coração de um homem de aproximadamente 40 anos. O bombeiro, a cada batida que dava no peito da vitima, sentia sua esperança de salva-lo esvair-se como a fumaça que saía pelas janelas. Com pancadas cada vez mais fortes ele insistia sem sucesso, até que seu companheiro interferiu:

– Não adianta, ele está morto.

Com as palavras do amigo ele não agüentou e desabou chorando, então seu companheiro dirigiu-se a nós:

– Um de vocês leve-o para fora, os outros venham comigo.

Cumprindo a ordem, um de meus amigos levou o bombeiro em choque, dois ficaram comigo, então seguimos o outro.

— Há mais gente neste andar – ele nos disse, ofegante, enquanto corria, atravessando o vasto corredor. – Ainda não sabemos quantos... Mas pelas minhas contas devem restar umas dez pessoas.

O ambiente estava sendo tomado pela fumaça, os andares de cima já tinham sido evacuados, pelo lado de fora nossos companheiros trabalhavam com as mangueiras, tentando conter as chamas que se espalhavam cada vez mais. Ao passarmos em frente a uma das portas, ouvimos pedidos de socorro. O bombeiro que seguíamos parou em frente à porta. ‘Afastem-se’, ele nos disse enquanto se preparava para entrar. Notando que a porta já estava em chamas pelo lado de dentro, ele a derrubou com um único chute. Quando a porta caiu, formou-se uma cortina de fogo à nossa frente.

– Aqui... Estamos aqui! – eram os gritos que escutávamos. Apesar de ouvir claramente os pedidos de socorro, não conseguíamos enxergar um palmo a frente dos olhos. Era um local de aproximadamente 50m² onde funcionava um escritório de advocacia, havia uma grande quantidade de arquivos, pilhas de papéis e algumas repartições feitas de pinos que dividiam o local em várias salas. Aquilo tudo queimava malditamente rápido, e para mim, aquele andar parecia a antecâmara do inferno.

Usando extintores, conseguimos apagar parcialmente as chamas da entrada da sala e penetrar no local. Logo que entramos, vimos sete pessoas desesperadas dentro de uma das repartições, impossibilitadas da sair devido às chamas que se formaram ao seu redor. Só podiam se limitar a gritar por socorro. Trabalhando novamente com os extintores, conseguimos abrir caminho e chegar até elas, duas estavam desacordadas devido à asfixia causada pela fumaça. Dois de meus companheiros carregaram as vitimas desacordadas para fora, enquanto eu e o outro bombeiro guiávamos o restante até a saída. Um dos rapazes do grupo disse com dificuldade:

— Ei, esperem... A moça nova ainda está La dentro.

— Que moça nova? – perguntei.

— A estagiária... Ela estava na ultima saleta à esquerda. Eu não a vi sair.

— É tarde demais! – advertiu-me o bombeiro que guiava o grupo.

Mas apesar do aviso, eu tinha que tentar, algo me dizia para ir lá.

— Você os leva para fora, eu vou lá! – foi o que eu disse ao meu colega.

—Tenha cuidado – ele replicou. – Eu volto para ajudar você.

Eu agradeci e parti em direção ao fundo do estabelecimento em chamas. À medida que ia avançando, as chamas aumentavam, não fosse minha roupa especial, eu não estaria aqui contando a história. Após alguns instantes, alcancei a tal saleta. Por sorte ela ainda não estava em chamas. Arrombei a porta com um único golpe. Foi quando a vi... Estava desacordada, presa sob um grande armário de ferro que caíra em cima dela.

— Ei... Acorde – eu disse, dando tapinhas em seu rosto.

Ela foi abrindo vagarosamente os olhos e eles encontraram os meus.
Era um anjo no meio de todo aquele inferno, tinha a pele branca como leite, as maçãs do rosto rosadas, cabelos negros e encaracolados, e grandes olhos verdes que eram de tirar o fôlego.

— Onde... Onde eu estou? – ela me perguntou ainda fora de si.

Quando eu expliquei a situação, a mulher voltou a si, mergulhando num rio de pavor.
— Me ajuda! Me tira daqui! – gritava assustada, me envolvendo com os braços.
— Calma... Como você se chama? – perguntei tentando acalmá-la.

— Esmeralda – agora com lágrimas nos olhos. – Senhor... Me ajuda... Por favor.

— Calma, está tudo bem... Preste atenção... Me chamo Mark, agora vou tirar este armário de cima de você, logo depois nós vamos embora. Tudo bem?

Ela assentiu com a cabeça.

Quando tentei levantar o maldito armário, notei que devia pesar uns quatrocentos quilos, e eu sabia que não poderia erguê-lo sozinho.

— Esmeralda – falei. – O armário é muito pesado, você terá de me ajudar.

— Tudo bem – ela respondeu, ainda chorando. – O que vamos fazer?

— Quando eu contar três, você me ajuda, vamos erguer o máximo possível, mas você terá de sair de baixo dele sozinha. Ok?

— Ok. – respondeu, contendo as lágrimas, parecia que agora tinha tomado algum ânimo.

— Vamos lá então... Um... Dois... TRÊS!

Pusemos o máximo de força que nos havia restado, conseguimos erguer o armário alguns centímetros.

– Agora é com você. Tire suas pernas daí. – ofeguei entre dentes.

— Eu não consigo! – gritou agoniada.

— Você consegue. Vamos! Não posso agüentar mais.

—Mark... Minhas pernas...

Foi então que eu observei rapidamente... Suas duas pernas estavam estraçalhadas do joelho para baixo. Quando ia dizer alguma coisa, veio a explosão.
Até hoje eu não sei dizer como aconteceu ou o que explodiu, só sei que depois do grande estrondo, o piso abaixo de nós desabou, fomos parar no andar de inferior.

Acho que levou uns trinta minutos até eu recobrar os sentidos, quando acordei em meio aos escombros, senti meu braço doer, por sorte ganhei apenas um braço quebrado com a queda, já Esmeralda... Bem... Ela não teve a mesma sorte. Quando a vi pela última vez ela estava olhando pra mim, aqueles lindos olhos verdes não demonstravam dor alguma, apesar de que agora, ela estava praticamente esmagada da cintura para baixo.

— É o meu fim, não é? – perguntou com a voz fraca e com lágrimas nos olhos.

Eu não entendia como ela ainda estava viva, como é possível uma pessoa com a metade do corpo esmagado, conversar normalmente? Parecia que ela tinha que me passar alguma mensagem antes de ir embora.

— Não diga isso – respondi, sentindo lagrimas percorrerem meu rosto. – Nós vamos sair dessa.

— Era meu primeiro dia de trabalho. Sabia? – ela me contou, sorrindo. Continuou: – Tenho 23 anos, estou no último ano da faculdade, era meu primeiro dia e veja o que acontece...

Enquanto ela falava, o fogo ia chegando perto. Usando o rádio, fiz contato com meus companheiros, dando nossa localização.

Ela continuou...

— Eu ia me casar mês que vem, sabia? Robert é um bom homem, ele é médico.

— Você “ia” não. Você vai se casar. Os outros já vão chegar e nos tirar daqui. – mesmo sabendo que não aconteceria, eu tinha de dar alguma esperança a ela.

Apesar das lagrimas nos olhos, sorriu novamente.

— Não, Mark, é o meu fim... É o meu fim e você sabe disso.

O fogo crescia e chegava cada vez mais perto. Foi então que escutei um ruído de marretas batendo no concreto, uma fenda de luz entrou pelo andar destruído, eram os outros vindo nos socorrer.

— Estamos aqui! – gritei.
— Agüente firme... Estamos chegando – eles responderam, continuando a remover os escombros para chegar até nós.

— Eu tinha um sonho de um dia me tornar uma grande advogada – continuou Esmeralda.

– Você vai querida... Você vai.

— Diga a Robert que eu o amo. Está bem?

— Você mesmo vai dizer – respondi.

O fogo estava a apenas alguns centímetros de nós, os outros estavam quase chegando. De repente ela me fez o pedido... Eu nunca poderia esperar ouvir palavras como aquelas, mas ouvi. Esmeralda envolveu minha mão com as suas e me pediu:

— Me mate, Mark... Eu não quero morrer queimada.

— Do que está falando? Eu... Eu não posso fazer isso.

— Eu imploro... Por favor.

Eu hesitei um minuto e o fogo começou a queimá-la.

— Eu imploro... Está doendo. Me mate! Me mate! – ela gritava de dor e mesmo assim eu não pude fazê-lo.

Senti alguém me puxar por trás, eram os outros que tinham chegado.

— Esperem... Ajudem-na! – eu berrava. Mas era tarde demais, o fogo já havia tomado conta de todo o local.

Enquanto eles me puxavam pra fora, eu podia ouvir os gritos de dor de Esmeralda. Ela me pediu que a ajudasse e eu não pude.

Depois o que me lembro é de estar sentado na calçada do lado de fora do prédio, e de uma mulher vir falar comigo. Devia ter uns cinqüenta anos, não deixei de notar algo familiar nela. Se agachou na minha frente e acariciou o meu rosto. Tinha grandes olhos verdes, como os de Esmeralda, mas os dela eram diferentes. Este era o olhar mais triste que eu já vira em toda minha vida. Com uma voz doce e suave, ela me falou:

— Eu sonhei com você... Você era um anjo que vinha salvar minha filha... Mas não estou vendo ela. Onde está minha esmeralda?

Ela ficou alguns segundos acariciando meu rosto e esperando uma resposta, mas não veio nenhuma. Então a mulher partiu... Sem dizer nada, apenas... Foi embora.”

Com o término da história narrada por Mark, ele e todos os ouvintes estavam com lagrimas nos olhos. O garoto Mike encostou sua mão na de Mark e tentou confortá-lo:

— Não fique assim, senhor Mark. Olhe sua tatuagem... O senhor salvou 16 vidas não salvou?

— Não garoto... 16 foi o número de vidas que eu perdi!

segunda-feira, 2 de março de 2009

O cômico caso do entregador de doces
{Acsa Fialho}

O sol estava nascendo em um novo dia, segundo o que ele pôde observar através dos olhos entreabertos voltados à monotonia da janela. Ainda com preguiça, esfregou os olhos, afastando as cobertas de cima do corpo magro, e finalmente se levantou.
Após lavar o rosto – que ainda apresentava crateras das impiedosas espinhas da adolescência –, ele pensou na agradável hipótese de tomar um café gelado, como ele gostava, antes de ir para mais um estressante e agonizante dia de trabalho.

― Porcaria de casa ― murmurou ele de si para si, correndo os olhos ao redor. A modesta casa onde morava ainda apresentava sinais protuberantes de uma pintura mal feita, e isso estava patente nas paredes descascadas.

Os móveis haviam sido comprados com bastante esforço, e eram todos usados. Viver sozinho sempre fora normal para Mike. Ele havia crescido em um convento, cuja entrada de rapazes era completamente proibida, mas as freiras o criavam às escondidas. Seus olhos caíram no porta-retratos que emoldurava a fotografia em que ele abraçava um cachorro vira-latas. As lembranças surgiram como raios de sol em plena manhã...

― Ei, fique quieto, Bartolomeu, pare de se mexer! ― disse o pequeno menino agachado, batendo no focinho do cachorro. Os dois estavam em um corredor de um convento nas lembranças de Mike. ― Já lhe disse pra ficar quieto, porcaria! Quer ver mulheres? Tem de ficar quieto ― e virou-se para o lugar onde estivera tentando encontrar alguma fina passagem de uma mulher desprovida de roupas. Cerrou os olhos a fim de enxergar melhor pelo escasso espaço da fechadura da porta.


Então, passou uma silhueta esbelta, cujo ventre estava nu, e o tronco coberto por uma fina camada de renda. O menino quase chorou de emoção. Então, a mulher foi em direção a um armário, abriu a porta e de dentro do armário emergiu uma silhueta forte, e parecia ser masculina. Os dois se atracaram em um forte afago.

― Estou vendo uma mulher, Bartolomeu. E é das boas, você precisa ver ― disse ele, batendo de leve no corpo que ele achava ser do cachorro, enquanto permanecia com os olhos na fechadura. ― Bartolomeu? ― e se virou para checar se era mesmo o seu cachorro. Ao contrário do que imaginava ver, a freira diretora do convento – e que não sabia da existência do menino – batia os pés no chão, fitando-o com um olhar reprovativo.

― Qual é o seu nome e o que você estava fazendo? ― perguntou ela com uma voz áspera.

― Hã... M-meu nome é M-Mike, senhora ― ele gaguejou, percebendo que suas mãos tremiam.

― Levante-se, seu pecador! Você estava espiando as pobres alunas? Meninas puras e santas; você não tem vergonha, seu animal?

O pobre menino mal pôde conter o riso ao ouvir a palavra “pura” e “santa”. Mal sabia a pobre freira o que a menina fazia dentro do quarto...

― Me desculpe, senhora. Eu estava procurando... Hã... A minha irmã.

― Pare de ser me contaminar com seus pecados, seu salafrário! Além de fornicar, ainda mente? Acho que você está endemoninhado, vou convocar o padre August para vir te exorcizar, você vai ver.
― Mas eu só estava... ― e antes que ele concluísse seu pensamento, a freira o puxou pela orelha, arrastando-o em direção a algum lugar que não dava para discernir. O menino berrou, tentando puxar as mãos da mulher, coisa essa que foi completamente inútil. Então, após descobrir que o menino morava no convento, e sem nenhum pingo de piedade sobre a qual a freira pregava, ela o expulsou mesmo sabendo que ele não tinha aonde ir.

A lembrança fez com que Mike sorrisse, e tal atitude pareceu absurdamente louca, visto que as lembranças eram amargas e tristes. Ele preferiu não olhar mais para o retrato, e após se enfiar em um casaco qualquer, tomou um gole do café de dois dias atrás e saiu em direção ao trabalho. Lá fora, o céu esplêndido. Raios de sol penetravam o mundo, acompanhados de uma gélida neblina matinal. Mike não era o que se pode chamar de “homem de sorte”. Na verdade, tudo em sua vida dava errado desde que ele se entendia por gente. Desde o nome – que, particularmente, ele detestava – até as coisas mais banais, como mulheres ou vida secular.

As mãos estavam enfiadas nos bolsos, a cabeça baixa, os pés andando rápido ao dobrar uma avenida. “Como ela fez isso comigo? Mas que vadia!”, murmurou ele para si mesmo, lembrando de uma mulher que o havia enganado com seu próprio chefe. Mas, enquanto tentava concluir seus pensamentos, uma buzina ensurdecedora o interrompeu.

― Quer morrer, seu animal?! ― berrou um homem gordo de dentro de um caminhão, que, por pouco, não o havia atropelado. Mike ergueu as mãos em um sinal de desculpas.

― Hã... Me desculpe, senhor.

― Me desculpe? Você quer saber pra onde você deve levar suas desculpas?!

Mas Mike não ficou para saber. Atravessou a rua com os passos rápidos, e olhou de relance para o relógio.

― Diabos! Praga dos infernos! ― rosnou ele, percebendo que estava vinte minutos atrasado. Ao concluir o pensamento, apertou os lábios para não praguejar quando sentiu a perna mergulhando em uma poça de água barrenta. Chutou o ar e continuou andando, ainda com as mãos nos bolsos e o olhar estressado.


Vinte minutos depois...

― Me dê um bom motivo pra que eu não arranque sua cabeça. Me dê um bom motivo pra que eu não te demita ― disse um homem com a voz ríspida. O homem não tinha uma aparência agradável; os olhos eram grandes e escuros, um bigode emoldurava o nariz gordo e os lábios finos. Debaixo da jaqueta, o homem escondia um generoso ventre. Ele estava tamborilando os dedos numa bancada asquerosa, enquanto levava a extremidade mais larga de um palito aos espaços entre os molares. ― Vou te dar cinco segundos. Um... Dois... Três...

― Hã... Eu perdi o ônibus, senhor ― respondeu Mike com um olhar receoso. O homem riu.

― Perdeu o ônibus? Todos os dias você me diz que perdeu o ônibus! Quer saber, vou te contar uma coisa ― e aproximou-se do rosto de Mike, assumindo um tom de voz especial ―, minhas mãos estão coçando pra não caírem nesse seu rosto de adolescente na puberdade ― e empurrou o corpo de Mike, que deslizou alguns metros no piso da loja.

― Me dê mais uma chance, senhor Burns. O senhor sabe que estou quebrado, preciso da grana até conseguir outro emprego.

O homem pareceu pensativo, e transcorrido longos segundos, finalmente disse:

― Escute bem, seu pedaço de esqueleto, vou te avisar uma coisa. Se você se atrasar outra vez, juro que quebro seus dentes e termino de esburacar seu rosto, estamos entendidos?

― Claro, senhor ― e após ouvir a resposta, o homem sorriu falsamente e voltou-se para o lado oposto, indo em direção a uma caixa grande e larga. Colocou-a nos braços fartos, enquanto conferia se estava tudo em ordem, e em seguida a entregou nas mãos de Mike. ― Leve essa caixa neste endereço ― e apontou para alguns nomes rabiscados na superfície da caixa. ― Entregue para senhor ou senhora Kung, eles são japoneses e meio velhos. Vão te entregar sessenta dólares, e acho bom que não falte nenhum centavo quando você voltar.

― Sim, senhor.

― Tome isso, pra ser mais rápido ― o homem entregou as chaves de algum carro nas mãos de Mike. ― Dirija com cuidado. Juro que se você fizer algum estrago, eu...

― Não se preocupe, senhor Burns. Irei me cuidar. ― Respondeu Mike, recolhendo as chaves e caminhando para o lado oposto.

Fora da pequena loja – Doces Swan –, ele avistou a picape vermelha com a qual provavelmente ele teria que fazer a entrega. Após se acomodar no assento do carro, ele colocou a caixa em uma posição confortável para que não capotasse com os movimentos do trajeto.
Já estava dirigindo há algum tempo, embalado com uma música qualquer. Então, durante uma parada normal em um sinal fechado, tudo o que ele sentiu foi o impacto de um enorme Jipe batendo nas costas do carro. Seu coração quase parou. Ele desceu do carro com um olhar fulminante.

― Onde você comprou sua carteira, seu imbecil?! ― berrou ele para quem quer que fosse o motorista. Mas, para seu espanto, um homem bastante alto, desprovido de cabelos, com várias tatuagens pelo corpo, desceu do carro retribuindo o olhar.

― Quem é o imbecil, valentão? ― perguntou.

― Hã... Bem, você bateu no carro e...

― Você é muito corajoso, não é? Me faz lembrar o palito de fósforo que acabei de queimar pra acender meu cigarro.
Então, lhe ocorrendo uma idéia, Mike fez uma careta, recuando alguns passos em direção à picape.

― Quer saber? ― ele perguntou quando já estava próximo o bastante do carro. ― Vá pro inferno, seu imbecil! ― e entrou na picape com os passos acelerados. Bateu a porta, enfiou a chave na ignição, e fez várias tentativas de ligar o veículo, o que foi inútil. Por algum motivo, o carro não estava funcionando. Olhou pelo retrovisor; o homem estava indo em direção ao carro. ― Mas que diabos! Liga logo, seu maldito carro!

Então, o homem abriu a porta – que Mike se esquecera de trancar – e puxou a gola dele até que estivesse caído no chão.

― Mas que coragem você tem! ― disse ele, e em seguida desferiu alguns chutes, socos e pontapés no coitado que, por bastante medo ou puro nervosismo, não estava sequer gemendo pelo ocorrido.

Após a sessão de espancamento, o homem foi embora e deixou Mike sozinho no asfalto, enquanto carros buzinavam mais atrás para que a picape saísse do caminho. Com deliberado vagar, ele caminhou até o carro que, agora, já funcionava. Ao avistar o restaurante Kung’s Chinese Food, ele estacionou a picape batida na frente do estabelecimento e desceu com as caixas nos braços repletos de hematomas.

― Você deve ser o senhor Kung ― disse Mike com dificuldade, observando um velho homem de olhos pequenos e repuxados. O homem sorriu.

― Ei, meu filho, o que houve com seu rosto? Você está um lixo, uma desgraça, um farrapo, um caco, um verdadeiro mendigo, um...

― Tudo bem, eu já entendi ― disse Mike, entregando a caixa. ― Vim a pedido do senhor Burns, da loja de Doces Swan.

― Você parece triste. Quer um biscoito da sorte?

Com a fúria aglomerada dentro de si, Mike olhou para o homem e respondeu:

― Pegue esse biscoito da sorte e...

― Tudo bem, você precisa de um biscoito da sorte ― o homem caminhou rumo ao caixa e destampou um pequeno vidro. De lá, ele retirou um biscoito pequeno e entregou para Mike. ― Vai fazer você se sentir melhor.

Mike pensou em mandar o homem para os infernos, mas resolveu aceitar. Abriu o biscoito e uma pequena faixa de papel estava enrolada sobre si mesma. Após comer o biscoito, Mike sentiu algo percorrendo suas veias, mas achou que fosse só impressão sua. Na faixa, estava: Boa ou má sorte. Tudo depende do que você vê. Feche os olhos e os abra outra vez. A primeira coisa que ver, lhe trará paz de espírito e sorte também.

― Que baboseira ― disse Mike, jogando o papel em um lixo.

― Não jogue fora, meu filho ― disse o homem. ― Faça o que está dizendo no biscoito.

― Tudo bem, tudo bem ― resmungou Mike, fechando os olhos de má vontade. Ao abri-los outra vez, deixou-os cair na caixa de biscoitos da sorte que estava sobre o caixa. ― Satisfeito?

― Quando você sair daqui, estará com mais sorte do que imagina.

― Tudo bem, vou fingir que acredito ― disse Mike, saindo para o lado oposto. ― A entrega está feita, agora já estou indo. Tenho que me preparar para ser demitido e, com alguma sorte, sair vivo da loja do chefe.

Quando já estava fora do restaurante, viu um grupo de mulheres – bastante atraentes, segundo o que ele notou – acenando em sua direção. Ele olhou para trás, e achou estranho que não houvesse ninguém atrás dele.

― É você mesmo, doçura ― disse uma delas, se aproximando dele. Mexeu em seu queixo e sussurrou: ― Alguém já lhe disse que você é uma gracinha?

― Hã... Não... Eu acho. ― Ele respondeu com uma expressão tão assustada quando poderia estar em uma situação como aquela.

― Pegue meu telefone ― disse ela, entregando um pedaço de papel nas mãos dele, e em seguida piscou. ― Me ligue quando quiser ― e foi-se para o lado oposto, pisando sobre o solo de maneira graciosa. Mike se beliscou para ter certeza de que aquilo era real, e olhou para o restaurante do senhor Kung.

― Não é possível... ― ele murmurou para si mesmo. Antes que completasse seu pensamento, um homem vestido com um elegante paletó, acompanhado por câmeras e pessoas vestidas com uniformes de uma emissora de tevê, sorriu para ele e acenou.

― Ei, você! É, você mesmo! ― e virou-se para a câmera, apontando para Mike ― Estamos aqui, ao vivo, na Avenida mais movimentada de China Town! E encontramos um branco ocidental! Parabéns, você terá que responder apenas uma pergunta e poderá ganhar dez mil dólares!

― Quem é você?

― Sou Edmond Andrews, do canal seis. Vamos deixar as apresentações para outra ocasião. Responda: o que você faria se pudesse viver em gravidade zero? ― e piscou para Mike como se estivesse se dirigindo a uma criança.

― Hã... Eu flutuaria?

― Exato! E você acaba de ganhar dez mil dólares em dinheiro. Sorria para a câmera, rapaz ―
disse o homem, sorrindo profissionalmente. ― Gostaria de mandar algum alô para alguém?

― Acho que vou mandar para...

― Muito bem. Um alô pra esse amigo! Aqui está seu dinheiro, até mais. Vamos agora peregrinar em direção a outra pessoa! ― disse o homem, saindo para o lado oposto.
Após conferir que haviam dez mil dólares em notas seqüenciadas dentro do envelope, Mike correu até o restaurante do senhor Kung, empurrou o pobre homem no balcão e encheu os bolsos com todos os biscoitos da sorte que conseguiu.

― Esse negócio funciona mesmo!

― Ei, você está roubando meus biscoitos da sorte? ― perguntou o senhor Kung, levantando-se do chão.

― Exato! Eu sempre fui um azarado, e agora que tenho a chance de ter sorte, quero agarrá-la com todas as forças.

― Ninguém rouba os biscoitos da sorte do Kung ― disse o primeiro, assumindo uma expressão diabólica. ― Escute bem ― e apontou o dedo na direção de Mike ―, você vai comer todos os biscoitos, mas quando seu corpo tiver que jogá-los fora através dos excrementos, sua sorte se acabará!

― Corta essa, Kung. E obrigado! ― respondeu Mike, correndo em direção à picape.

Alguns minutos depois...

― Hã... Senhor Burns? Posso falar com você um instante? ― perguntou Mike, olhando esgueirado para o chefe.

― Diga.

― Um Jipe bateu na picape quando eu estava indo fazer a entrega para o senhor Kung e...

― Ah, a picape ― Burns gargalhou. ― Não se preocupe. O cara que bateu nela veio até aqui depois de ver a logomarca da nossa loja no carro. Ele disse que ficou com pena e resolveu pagar tudo. Conversamos muito e acabamos fechando um negócio! Ele tem um supermercado, e agora nós dois estamos trabalhando juntos. Vendo doces a ele. Bem, filho ― Burns segurou o rosto de Mike com as mãos ―, acho que você merece umas férias. Vou te dar um aumento!

Aquela afirmação fez com que Mike se sentisse pateticamente louco.

― Isso não pode estar acontecendo... ― murmurou para si mesmo. Então, percebendo que sua sorte era inquestionável, olhou para Burns e sorriu. ― Me desculpe, mas preciso me vingar. Sei que você não irá fazer nada! Isso aqui é por ter me chamado de esqueleto quatro vezes! ― disse ele, socando o rosto do homem. ― Isso aqui é por ficar com a minha garota! ― e socou-o mais uma vez. ― Esta é por nunca ter me tratado bem e esta é por algum motivo que não sei dizer ― concluiu, chutando a genitália de Burns, que caiu no piso da loja.

Após alguns minutos se contorcendo de dor, Burns se levantou e, diferente da reação esperada, disse:

― Eu merecia isso, filho. Admito! Não te culpo por nada.

Mike urrou de alegria, chutou o ar e correu para fora da loja.

― ESTE É O MELHOR DIA DA MINHA VIDA!


{Gente, posto o resto do conto depois, por ser um conto relativamente grande. O final é bem engraçado. Leiam esse pequeno trecho e comentem. Sugiram, critiquem... abraço!>

O trem da quarta estação
Acsa Fialho©

Já era noite na pequena cidade de Desmond Hill; o sol já se punha, levando com ele as cores rosadas do céu. No veludo negro e impetuosamente desprovido de estrelas, apenas a imensa e clara Lua repousava. Talvez não houvesse observação melhor para se fazer, especialmente para August que passava suas noites inteiras a observar o horizonte, ou qualquer coisa que propusesse algum resquício de paz interior. Ele suspirou, então. Os dedos finos e compridos tamborilavam na lateral quente da fumegante xícara de café.

― August? ― uma velha senhora bateu na porta, entrando no aposento com cautela. Ela caminhou até ele e indagou ― Querido, você não quer ir dormir? Já está tarde. Você faz isso todas as madrugadas. É por isso que seus olhos estão tão cansados e cheios de olheiras.

Então, ele sorriu um pouco, e fitou-a com os olhos pálidos. Beijou o topo da cabeça da velhota e voltou a mirar o infinito.
― Não se preocupe, mãe. Vou ficar bem.


― Vai ficar bem? Você diz isso todas as noites. Mas é claro que não está bem. Não está nada bem.

― Já lhe disse para não se preocupar, mamãe. Só ando meio cansado, e é só.

― Mas cansado de quê? ― insistiu a mulher com um tom de voz tipicamente maternal. ― Você passa o dia inteiro escrevendo coisas, ou tocando aquela flauta. E vez ou outra sai para fazer alguma coisa que preste. Como pode estar tão cansado?

― Mamãe ― ele a fitou outra vez ―, acho melhor você dormir um pouco e se preocupar menos. Está tudo bem.
Então, vendo que não adiantaria continuar a conversa, a velha senhora saiu do aposento sem dar uma palavra, mal sabendo que aquela seria a última vez. August observou a porta se fechando; os olhos tristes e vazios de emoções voltaram a mirar a janela. Se a vista que a janela proporcionava fosse a mais bela de todas, ele poderia ter uma desculpa para passar ali todas as noites. Mas, ao invés disso, a janela de madeira velha emoldurava apenas um denso campo repleto de mato e árvores infrutíferas, que em algum ponto no fim do horizonte tocavam o céu. Ele respirou fundo aquele ar verde. Pegou sua flauta, um velho chapéu e pulou a janela. Lá fora, a tristeza era branda.

Com os passos tímidos e graciosos, ele caminhava com as mãos erguidas enquanto uma leve melodia saía dos poros da flauta. Alguns o olhavam de esguelha, como se ele fosse anormal demais para viver entre eles. Seus passos o levavam a mergulhar cada vez mais no campo repleto de mato. Cada vez mais longe da casa – e, por conseqüente, da janela –, ele se sentiu aliviado por estar literalmente só. Colocou a flauta no bolso, pôs o chapéu e correu matagal adentro. Então, cansado e ofegante, sentou-se em uma velha pedra.

― Ah, vamos lá... Apareça! ― sussurrou ele para o vazio ― Você disse que viria na quarta estação. Você disse que chegaria no inverno! Hoje começou o inverno, não está vendo? Já está ficando frio aqui. Vamos, apareça... Não me deixe te esperando mais alguma eternidade...

E essa última frase em particular saiu como uma confissão. Ele colocou o rosto nas mãos, e, numa inútil esperança de se distrair, começou a desprender as raízes do mato que flanqueava o terreno. Seus olhos se encheram de lembranças...

― Ei, não corra! Não sou mais um menininho. Já estou ficando velho! ― o homem dizia
nos intervalos entre as gargalhadas, enquanto, inutilmente, tentava alcançar a pessoa mais a frente.

― Tudo bem. Eu não sabia que eu amava um idoso! ― a mulher respondeu em um tom divertido, pousando as mãos na cintura, arquejante.

― Sabe, querida ― o homem se aproximou dela e os dois caíram sobre o mato, fitando o céu negro mais acima ―, está vendo aquelas estrelas? Elas não podem chegar nem perto do número de vezes que pensei em você enquanto esteve fora.

― Pare de exagerar, August.

― Juro pela minha vida! ― ele beijou os dedos cruzados ― Você me deixou sem chão.

― Certo, certo ― ela resmungou. ― Mas o que importa é que já estou aqui, não é?

― Mas é claro. Você e nossos futuros filhos.

― Que filhos?

― Mas é claro que vamos ter filhos. Você não quer?

Ela pareceu pensativa, com um receio e aflição patente na expressão
esboçada no rosto fino.

― Claro que sim, que pergunta mais sem cabimento!

― Você hesitou, querida. Quando uma pessoa hesita é por que...

― Já lhe disse que quero ter filhos. Vamos ter um monte deles.

Então ele sorriu, pressionando seus lábios aos dela.

― August?

― Sim?

― Preciso ir embora.

― Mas já? Não! Você não pode ir embora! Toda vez que você vai, não volta mais...

― Meu querido, olhe pra mim ― ela segurou o rosto dele entre as mãos. ― Vou poder te
explicar em breve o porquê de eu ter que ir embora sempre, e voltar de tempos em
tempos. Prometo que irei te contar ― e então, ela se levantou.

― Quando você volta?

― No inverno, meu amor. Como sempre. Na quarta estação do ano ― e virou-se para o lado oposto.

― Mas... Espere! Por que tem que se ser sempre o inverno? Por que não vem no verão? Como eu queria te levar pra ver o mar, ou pra colhermos flores na primavera! Ou darmos uma volta pelo lago no outono... Mas por que o inverno?!

― Em breve eu te explico. Feche os olhos. ― Ele, a troco de uma apaixonada obediência, fechou os olhos e esperou. Passados alguns instantes os abriu outra vez, e ela simplesmente não estava mais lá.

Tal lembrança fez com que August arrancasse as raízes do mato com mais força, enquanto algumas lágrimas se misturavam com a terra. Então, pegou a flauta com as mãos sujas de densos flocos de barro, e tocou sua melhor melodia, ao passo que sentia alguns gélidos flocos de neve caindo em seu rosto.

― Eu disse que voltaria no inverno ― soou uma voz atrás dele. Subitamente, com uma ansiedade e aflição mescladas a um susto momentâneo, ele se virou na direção da voz.

Lá estava a imagem da pessoa por quem ele esperara durante o ano inteiro. Parada debaixo de uma sombra qualquer projetada por uma árvore cujos galhos apresentavam ainda algumas folhas, estava ela. Ela, apenas. August correu até ela e a girou em um abraço, ainda sem dizer uma palavra.

― Eu juro que dessa vez você não vai embora. Eu juro!

― Vamos, August!

― Pra onde diabos você vai me levar?

― Preciso te mostrar uma coisa.

Ela segurou a mão dele, guiando-o para um lugar cada vez mais longe da cidade, e mais mergulhado no matagal. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som de folhas secas trituradas sobre pedregulhos. Ao passo que andavam, algo em seu íntimo alertava August a recuar. Então, passados longos minutos de silenciosa caminhada, ele pensou em questionar algo, mas eles já haviam chegado ao local. Ela parou em frente às ruínas de um trem, onde alguns dos vagões pareciam estar tortos, e outros, caídos.

No interior das ruínas, haviam bancos e janelas em perfeito estado, como se nunca tivessem sofrido acidente nenhum. Sobre algumas das mesas – provavelmente usadas durante as refeições nas viagens – haviam vasos que abrigavam flores murchas.

Então, completamente confuso, ele largou a mão dela e indagou:

― O que você quer me mostrar? Um trem destruído. É isso? ― Ela, por sua vez, caminhou em direção a uma mala jogada em um dos bancos. Abriu-a e retirou um retrato envelhecido. Após passar os dedos sobre a superfície empoeirada, sorriu e o levou até August. Apontou para um rapaz e disse:

― Lembra quando eu te dizia que você parecia com meu primo? Veja só! Parece até que são as mesmas pessoas.

― Essa moça da foto... é você? ― perguntou ele, apontando para uma linda mulher ao lado do rapaz.

― Ah, sim. Eu estava tão... Viva.

Então, August deixou seus olhos caírem sobre a inscrição da fotografia. Seus olhos se esbugalharam e ele gargalhou.

― 1902? Essa foto é de 1902? Amor, você conseguiu me assustar ― ele voltou a rir. Ela nada disse, apenas o fitou com os olhos cerrados à espera do que viria depois. ― Ah, vamos, amor. Dê uma risada! Você tem que admitir que essa sua brincadeira foi
incrível.

Ela continuou em silêncio e caminhou rumo a um banco à esquerda. Passou os dedos sob a superfície e sentiu algumas lágrimas lhe descendo nas bochechas. August correu até ela e perguntou:

― Falei algo de errado, querida? Me perdoe. Eu achei que...

― Foi aqui, August ― ela sussurrou, secando as lágrimas.

― Aqui o quê?

― Onde eu morri.

Morrer. A palavra reverberou um longo tempo nos ouvidos de August até ter a sensação de que seu chão estava sumindo. Ele voltou a olhar a inscrição da foto e sussurrou:

― O que foi que você disse?

― Era inverno ― ela caminhou até a janela, pousando os dedos no vidro. ― Era meu aniversário. Meus pais decidiram me levar para assistir a um concerto de música na Irlanda. Mas pra ir até lá, nós precisávamos pegar o navio na capital. Então, embarcamos nesse trem que chegaria à capital antes de o sol nascer. Eu estava com meu primo nesse vagão. Ouvimos alguns barulhos e... ― ela chorou outra vez. ― O vagão onde estávamos se chacoalhou. Os de trás estavam caindo, parecia que o trem estava com problemas. Minha mãe e meu pai estavam nesses vagões. Eu fui até o terceiro vagão que estava prestes a cair, mas... Tudo o que me lembro foi de ter visto os vagões se desprenderem uns dos outros e meus pais foram se distanciando...
Então, uma explosão os matou. Eu tinha asma, e estava na porta do vagão que havia
escapado. Fiquei desesperada e sem ar. Vim até esse banco e abracei a foto dos meus pais, enquanto sentia que meu último suspiro estava acabando. Eu também tinha problemas cardíacos. Não agüentei muito tempo. Foi assim que eu morri.

August, como se tivesse recebido a visita do diabo, foi se afastando da mulher aos poucos, sorrindo nervosamente.

― Você não está falando sério. Que bobagem! Sabe, você está me assustando. Pare com essa brincadeira.

― Eu estou morta, August. Ninguém me vê. Ninguém. Mas por algum motivo, você consegue. Eu morri no inverno, e é só no inverno que você pode me ver. Eu tinha medo de que você não me visse mais, e achasse isso estranho. Fiquei com medo de te contar. É por isso que sempre inventei desculpas para aparecer apenas no inverno. Na quarta estação. E é por isso que eu hesitei quando você falou de filhos ― ela riu baixinho. ― Uma fantasma grávida? Não é engraçado e divertido?

― Não. Não tem nada divertido.

Então, ela desfez o sorriso e as lágrimas voltaram.

― Me desculpe, querida. Me desculpe. Isso é difícil pra mim! ― disse ele.

― Tudo bem, August. Me perdoe por ter deixado isso continuar. Eu estou morta! Vou te
deixar em paz. Eu juro que nunca mais volto aqui em Desmond Hill. Eu prometo ― e virou-se para o lado oposto. Ele a segurou pelo braço e encarou-a nos olhos.

― Não vai embora mesmo. Eu não vou permitir. Se você está morta, e o único jeito de te ter pra sempre é estando morto também, só tenho um jeito ― ele se virou e saiu do trem em ruínas. Ela o seguiu apressadamente.

― Aonde você vai? August!

― Já ouviu falar em Romeu e Julieta? Pois então. Romeu estava certo ― ele se inclinou para frente e apanhou um caco de vidro jogado no chão.

― Não me diga que vai... Não, August! ― berrou ela, correndo para alcançá-lo.

Ele sorriu, e apertou o caco de vidro contra o pescoço, enquanto gotas de sangue pontilhavam sua camisa branca. Ela gritou. Ele também. Então, quando o caco pareceu atingir a veia principal, ele caiu no chão.

― Por favor, não morra por minha causa ― ela sussurrou quase sem voz, deslizando sobre os joelhos rumo ao corpo dele.

― Ei ― ele balbuciou com a voz fraca, já em suas últimas palavras, erguendo um dedo para secar as lágrimas dela ―, não chore, querida... Daqui a pouco nos encontraremos. Eu amo você.

Ela agarrou-se ao tronco, e então, com os olhos úmidos, ela olhou ao redor. Flocos de neve cobriam a superfície de tudo. Havia chegado a quarta estação.

O Verbo Jazer

Texto retirado para revisão...