quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Lugar Certo, Hora Incerta

© 2009, by Gustavo Pierobom

Havia acabado de brigar com a esposa. Velhos assuntos, outrora já esquecidos, vieram à tona, trazendo consigo uma não tão comum discussão conjugal.

Naquele início de noite de sábado, nem mesmo uma boa leitura, que fora muitas vezes, seu refúgio àquelas situações, bastou para ocupar sua mente, distraindo-o dos problemas caseiros.

Lembrou-se do seu velho pai, que sempre tivera as melhores soluções para coisas assim. Parecia que ouvia seu velho dizendo: “Quando a mulher insiste em brigar, dê uma saída para arejar as idéias. Beba alguma coisa, fique só, por um momento. Mas não exagere no horário, nunca esqueça: se você a ama, ela sempre está com a razão.”

Resolveu seguir o conselho que o pai acabara de lhe dar em pensamento. Pegou as chaves do carro e vestiu um casaco qualquer. Foi até o quarto, onde a esposa, deitada na cama sob dois cobertores, choramingava, para avisá-la de sua saída.

— Amor, vou sair um pouco. Não tarda estarei de volta.

Após receber o silêncio como resposta, subiu no carro e saiu dirigindo pela cidade. Dirigir à noite era, depois de uma boa leitura, sua terapia preferida. Optou por ruas secundárias, menos movimentadas. Queria sossego. Passou por lugares onde nunca havia passado no período de um ano que morava naquela cidade. Lembrou-se dos amigos e de como era bom ter com quem conversar. Após ter aceitado aquela proposta de emprego, se mudara com a esposa para aquela longínqua cidade. Desde então estava carente de amizade. Sentiu saudade do seu amigo Luis, o qual chamava de irmão, e das longas noites jogando conversa fora, relembrando os tempos de infância, onde jogavam bola, descalços, na rua de chão batido. Refletiu se havia tomado a decisão certa, se ter se casado na casa dos vinte, trocando sua liberdade jovial pela vida conjugal fora a melhor coisa que fez. Sim. Havia decidido corretamente. Apesar de às vezes a saudade das farras com os amigos lhe corroer por dentro, amava Elena mais do que tudo, talvez mais que a própria vida. Não se arrependia de nada.

O ronco do seu estomago o lembrou que ainda não comera nada naquele dia. Depois de vagar mais um pouco, passou em frente a um quiosque de lanches, onde uma única mesa, acompanhada de uma cadeira e do silêncio, estava muito convidativa.

Estacionou o carro e dirigiu-se ao local. Um simpático senhor de cabelos brancos, assistia uma minúscula televisão preto e branco. Sentou-se à mesa e, ignorando a lei seca, pediu uma cerveja. O senhor trouxe a cerveja acompanhada de um humilde cardápio.

— Noite difícil, heim? — perguntou o senhor com um tom de voz de filósofo que pareceu se encaixar perfeitamente àquela ocasião.

— É. Mas como o senhor sabe? Minha cara está tão ruim assim?

— Não filho, não está das piores. Acontece que eu tenho um grupo muito especial de clientes.

— É mesmo? — perguntou curioso a respeito do que de especial ele próprio poderia ter.

— Sim. As pessoas só vêm aqui quando precisam ficar sós. Esquecer os problemas... Arejar a cabeça. — e piscou o olho. — Sabe?

— Sei. — respondeu achando curioso a coincidência das ultimas palavras do senhor e as do seu pai.

Correu rapidamente o olho pelo cardápio e pediu um cachorro quente.

— Mas o senhor não tem muito movimento por aqui. — comentou. — Não seria melhor instalar-se no centro, onde há mais movimento?

— E abrir mão de casos como o seu? — disse o velho, enquanto já preparava o lanche. — Aqui é muito mais interessante... Lembre-se: Os inteligentes lêem livros, os espertos apenas observam.

Ele achou estranho o tom de voz debochado que o velho utilizara para proferir as últimas palavras, mas não, não. Era apenas coincidência.

— Filho, — escutou o senhor falar, enquanto já sentia o saboroso aroma da futura refeição. — você está no lugar certo, mas a hora é incerta, e quando a hora é incerta, coisas podem acontecer. Coisas que podem mudar uma vida... Vou fazer seu lanche para a viajem, talvez dois. Quem sabe? — e piscou o olho. — E você vai para casa resolver as coisas. Que tal?

Pensou então que aquele senhor era malandro demais, e que dizia aquilo somente para poder vender mais um lanche.

— Não, obrigado, vou comer aqui mesmo. E traga outra cerveja.

— Bem, depois não diga que eu não avisei.

O senhor então tornou-se mudo. O homem, enquanto apreciava sua segunda cerveja, puxou da memória, tentando lembrar-se se existia naquela cidade alguma floricultura aberta vinte e quatro horas. O tradicional buquê de rosas era, desde sempre, o infalível reconciliador de relações amorosas.

Cinco minutos depois o cachorro quente estava servido. Tinha boa aparência e um cheiro agradável. Parecia que aquele senhor, além de ser muito malandro, sabia preparar um lanche como ninguém.

Quando abriu a boca para dar a primeira mordida, escutou o barulho de um carro vindo em alta velocidade. Achou estranho, pois desde que chegara ali, não havia visto passar e tampouco ouvir nenhum automóvel. O barulho foi tornando-se mais intenso, aproximando-se rapidamente, até que então sua silhueta surgiu na ponta da rua, vindo, pelas suas contas, a no mínimo 120km/h. Foi questão de segundos para o carro estar a poucos metros dele e, sem ao menos brecar, colidir com um poste do outro lado da rua, exatamente em frente ao quiosque de lanches.

— Deus do céu! — exclamou, deixando seu cachorro quente cair, ainda intacto, no chão, e correr em direção ao veículo para socorrer as possíveis vítimas.

O capô do carro estava completamente destruído e tinha se reduzido a um terço do seu tamanho original. A água fervente do radiador jorrava para o alto, assemelhando-se com um vulcão em erupção.

Abriu a porta do motorista e encontrou sua única ocupante. Uma mulher jovem, talvez da mesma idade da esposa, encontrava-se desacordada com um profundo corte na testa. Desprendeu-a do cinto de segurança e tomou-a nos braços.

— Chame uma ambulância! — gritou para o senhor do quiosque.

— Não tenho telefone. — explicou o senhor, sem demonstrar o menor sinal de preocupação. — Eu o avisei. — complementou, gesticulando com as mãos e com um debochado sorriso no rosto.

O homem percebeu que teria de resolver aquilo sozinho. Ainda com a mulher nos braços, apalpou os bolsos em busca do celular, mas depois de uma breve verificada, notou ter deixado o aparelho em casa. Olhou ao redor. Nenhum telefone público. “Merda!” Pôs a mulher deitada no banco traseiro de seu carro e saiu dirigindo rapidamente para o pronto socorro municipal, que não ficava muito longe dali. Em poucos minutos ele estava entregando a mulher aos médicos de plantão e explicando o ocorrido.

Sentiu-se na obrigação de aguardar um pouco até que soubesse alguma notícia a respeito do estado clínico da mulher. Não soube dizer ao atendente que fazia os cadastros, os dados pessoais da paciente, mas, como o protocolo exigia, forneceu seus próprios para possíveis verificações posteriores.

Então sentou-se numas das poucas cadeiras vagas na ala de espera do hospital, mas, vencido pelo cansaço, adormeceu. Quando acordou-se percebeu que já passava das três da madrugada. “Elena vai me matar.”

— A mulher que eu trouxe, como ela está? — perguntou a outro atendente, pois o de antes já não estava.

— Ah, era o senhor? Desculpe, mas ela foi embora há mais de uma hora. Não foi nada grave com ela. Eu não soube dizer a ela quem a havia socorrido. Me desculpe, mas ela pediu seu telefone, achei que não haveria problema em fornecê-lo, sabe, ela era muito bonita, apesar do grande curativo na testa.

— Obrigado!

Saiu correndo dali em direção ao carro. “Elena vai me matar.” Deu a partida e saiu dirigindo a toda velocidade para casa. Consultou novamente o relógio. 03h45min. “Elena vai me matar.”

Quando entrou em casa a esposa já estava com a mala pronta.

— Onde você estava até essa hora?!

Ele começou explicando que tinha ido fazer um lanche, mas a esposa o interrompeu:

— E esta mensagem no seu celular?! — furiosa, com o aparelho em mãos.

Depois de caçar no ar o objeto que a esposa acabar de lançar com força exagerada, leu a mensagem.

“Muito obrigada por esta noite. Foi maravilhoso uma pessoa como você estar no lugar certo. Me ligue assim que poder, tenho que lhe agradecer por hoje.

Beijos, Gabrielli.”

“Ai, agora fodeu!”

— E então, quem é essa vadia?!

Ele aproximou-se da sua amada tentando acalmá-la e explicar o ocorrido, mas quando chegou perto, as coisas pioraram. Ela apontou furiosa, para o seu pescoço.

— E essa marca de batom no seu colarinho?! Você não tem sentimentos?! Depois de tudo que vivemos juntos?!

Percebeu que na hora em que tomou a mulher nos braços para socorrê-la, possivelmente seus lábios pudessem ter tocado a gola de sua camisa branca. “Agora fodeu de vez!” A mulher berrou um seco “Adeus” e, carregando sua mala, saiu porta fora em plena madrugada.

Vencido e abismado pelas diversas peças que o destino lhe pregara naquela noite, resolveu não ir atrás da esposa. Definitivamente aquela não era uma boa noite para resolver problemas afetivos. Amanhã, possível, porém muito improvavelmente conseguiria convencer a esposa a acreditar na sua incrível aventura noturna. Agora ele só conseguia refletir sobre a teoria daquele senhor do quiosque de lanches: o lugar pode até ser o certo, mas se a hora é incerta... Estamos perdidos!

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Beleza Interior

© 2009, by Gustavo Pierobom

— Como ela está, Doutor?

O médico teve dúvidas quanto ao que responderia para aquela desesperada mãe que, com a tristeza estampada no rosto demasiado pálido e os olhos avermelhados, já extinguira suas reservas de lágrimas há dois dias, chorando sem parar na ala de espera do hospital.

— Acalme-se, senhora, sua filha está um pouco melhor. — mentiu.

— O senhor... O senhor acha que ela tem chances?

Novamente o jovem médico hesitou ao notar o vago brilho de esperança que nascera nos olhos da pobre mulher ao absorver as palavras anteriores.

— Claro que há chances. — omitindo que eram cerca de cinco por cento. — Veja bem... A senhora acredita em Deus?

— Lógico doutor, por que não acreditaria?

“Porque sua filha de quinze anos está na UTI” Pensou o médico, para si.

— Então reze, tenha fé... Tudo dará certo.

Alguns dias antes...

— Mayara, o café está na mesa. Você vai se atrasar para a escola.

— Já vou, mãe. — gritou a menina, enquanto, diante do espelho do banheiro, dava os últimos retoques na maquiagem.

Mayara tinha orgulho do reflexo que via no espelho. Um rosto perfeitamente desenhado, sem espinhas (o que era incomum entre as várias amigas do colégio), longos cabelos loiros cacheados, e grandes e expressivos olhos azuis. Assim como o rosto, seu corpo era perfeito, se ajustava bem em qualquer tipo de roupa que desejasse usar, na ocasião eram calças jeans, blusa branca cavada de mangas curtas e um casaco de moletom com capuz.

— Vamos filha, já são quase oito horas.

— Já vou, já vou. — apertando os lábios um de encontro ao outro para espalhar o batom, e correndo para a cozinha.

— Filha, todo dia é isso? Você terá que acordar mais cedo de agora em diante.

— Pô mãe! Eu tenho que me arrumar, você sabe.

— Mas você já é linda, não precisa se maquiar tanto.

— Ah mãe, são só uns retoquezinhos.

— Está bem, mas agora coma. Preparei torradas para você.

— Torradas? Nem morta! Só vou beber um copo de leite desnatado.

— Filha, você precisa se alimentar melhor.

— E você chama toda essa gordura de uma boa alimentação?

— Mas... — não pôde completar a frase. Mayara deu um beijo em seu rosto e saiu porta fora.

— Tchau mãe.

A mãe fez só, a sua breve refeição matinal e logo depois partiu para mais um dia de trabalho no banco.

Mantendo sua rotina das manhãs de segunda a sexta, Mayara esperava solitária, no ponto a uma quadra de sua casa, o ônibus para a escola. Ah, lá vem ele. Veio mais rápido que de costume. Mayara embarcou e, em pé, disputando algum espaço com os outros passageiros do superlotado veículo, esforçava-se para não cair por cima de alguém quando o motorista fazia rapidamente as curvas. Em meio à aglomeração de pessoas no corredor, todas com suas axilas encostando umas nas outras, Mayara refletia um pouco sobre sua vida. Não tinha do que reclamar, sua mãe nunca deixou faltar nada em casa, sempre teve tudo o que queria, nem mesmo a ausência do pai, que abandonara sua mãe quando ainda estava grávida, tinha importância.

Após vinte minutos, ela desembarcou em frente à escola. Como sempre, suas amigas Rafaela e Vanessa a esperavam no ponto.

— Pô, amiga, já era hora. Vamos, vamos... Agora tem teste de química. — Vanessa, enquanto as três apressavam seus passos rumo à sala de aula.

Enquanto, em companhia das amigas, Mayara percorria os corredores quase lotados da escola, era alvo de vários olhares desejosos por parte dos meninos da mesma idade, e, hora ou outra, uma cantada solta no ar, arrancava risadinhas das três amigas.

— Eu não vou mais andar com você, May. — brincou Rafaela.

— Ué, por quê?

— Ainda pergunta? Nenhum menino olha pra mim quando estou com você.

— Deixa disso, boba. Você fala assim desde a sexta série e ainda não desgrudou de mim.

Agora subiam um lance de escadas e adentravam num corredor deserto.

— É, mas é você quem fica com os mais...

— Fique quieta, estamos chegando.

A sala de aula estava mergulhada num gritante silêncio, cabeças baixas inertes nas folhas sobre as mesas. As três fracas batidas que Mayara deu na porta, ecoou como três toques de tambor no interior da sala.

— Ah, o trio parada dura... Já deviam saber que não devem bater à porta ao chegarem atrasadas. — o comentário do exigente professor, arrancou alguns risos dos demais alunos.

— Mas...

— Peguem suas provas e sentem-se. Vou me lembrar deste atraso na hora de corrigi-las.

Passado algum tempo, o sinal do intervalo penetrou na sala de aula.

— Acabou o tempo pessoal, me entreguem as provas... Vocês receberão as notas na próxima aula.

Os alunos levantando-se aos poucos, alguns conferindo suas respostas pela ultima vez, outros ainda rabiscando alguma coisa nas folhas, deixavam os testes sobre a mesa do professor e encaminhavam-se à saída.

— Ufa! Aquela questão dos elétrons foi de matar. Vocês conseguiram resolver? — Mayara para as duas amigas.

— Qual, a numero três?

— Não, a cinco.

— Na minha era a oito.

— Ih, professor nos deu testes diferentes de novo.

— Também, May, da última vez que colamos, ficamos as três com nota máxima, enquanto todos os outros conseguiram no máximo, a média. Você esperava o que? Ele desconfiou.

Riram enquanto dirigiam-se ao pátio da escola. A hora do intervalo era a melhor. As três amigas botavam a fofoca em dia, falavam de garotos, de roupas, daquela menina insuportável da 311 e de como não merecia o namorado bonito que tinha.

— E então, estão prontas para a festa na casa do Pedro no sábado?

— Acho que minha mãe não vai me deixar ir. — respondeu Mayara.

— Por que não?

— Ah, você sabe como é minha mãe. Se preocupa de mais comigo.

— E que mãe não é assim, querida? Vê se vai, heim, vai estar ótima, e eu soube que o Bruno vai estar lá.

Mayara foi assaltada pela lembrança da briga com o atual ficante, Bruno, no último fim de semana. Haviam ido juntos ao parque, ela reclamara dele quando este acendeu um cigarro, o que deu inicio a uma feia discussão, que resultou numa separação imediata e cada um indo sozinho para casa.

— Vou ali na cantina comprar um suco. — disse como desculpa para ficar um minuto só. — Já volto.

No caminho para a cantina, Mayara percebeu uma menina sentada sozinha num canto, chorando. Resolveu ir lá ver o que estava acontecendo. Aproximou-se da figura cabisbaixa e pôs a mão em seu ombro, enquanto sentava-se no chão, a seu lado.

— O que foi, querida? Por que está chorando?

A garota ergueu a cabeça, revelando olhos vermelhos e um rosto percorrido por lágrimas.

— Quero ficar só, por favor.

— Bem vinda ao clube, mas não vou sair daqui, não enquanto você estiver chorando.

— Você não é aquela garota popular do terceiro ano? — em meio a soluços.

— Do terceiro ano, sim, quanto ao popular, é você quem está dizendo.

— Não sou só eu quem diz, a maioria dos garotos da minha sala venera você.

— Bobagem, querida, mas o que isso tem a ver? Não mude de assunto, me conte. Por que está chorando? E não me diga que é por minha causa.

A gora sorriu.

— Ah, vejam só, enfim um sorriso.

— Desculpe, é que eu não sabia que você era tão legal.

— Por quê? Você é uma das que pensam que sou uma bruxa malvada, não é mesmo?

— Não, não é isso, é que...

— Ora, boba, não precisa mentir. Mas não se envergonhe, no fundo, no fundo eu sou mesmo.

As duas riram.

— Qual é o seu nome?

— Fernanda.

— Fernanda, me chamo Mayara. Você quer ser minha amiga? — estendendo a mão.

— Claro! — apertando-a.

Mayara sentiu-se feliz ao ver que as lagrimas de Fernanda haviam desaparecido.

— E então, não vai me contar por que chorava?

— É que os garotos da minha sala ficam pegando no meu pé, nenhum deles gosta de mim, e tampouco as meninas. Eu não tenho amigos, sabe?

— Mas por que eles ficam pegando no seu pé?

— Ora, porque sou gordinha! Eles passam o dia debochando.

— Eles são uns idiotas, isso sim!

— Você não se importa de eu ser gordinha?

— E por que me importaria? A beleza mais importante é a interior. Não adianta você ter cinturinha fina e ser uma bruxa enrustida. Além do mais, você é muito bonita.

— Pare, não precisa mentir pra mim.

— Não estou mentindo... É, bem... Você precisa de uns “retoquezinhos”, mas seu rosto ajuda bastante.

— Que retoquezinhos?

Mayara sorriu.

— Anote aí meu telefone, me liga hoje à tarde, você pode vir à minha casa que eu te dou umas dicas. Está bem? Agora levanta daí, vem, vou te apresentar minhas amigas.

— Rafaela, Vanessa, quero apresentar Fernanda, minha mais nova amiga.

Mayara ficou furiosa ao perceber os “oi” desdenhosos que as duas proferiram no cumprimento.

O sinal tocou.

— Temos que ir. Fernanda, estamos combinadas então?

— Sim. — respondeu Fernanda, expressando sua alegria com um sorriso de orelha a orelha.

Fernanda foi em direção à sua sala, o primeiro ano ficava no andar térreo. As outras três partiram para o segundo andar.

— Quem é aquela gordinha, May?

— Já falei que minha nova amiga, e não fale assim dela!

— Ta bom, ta bom... Mas ela vai andar com a gente?

— Sim.

— Mas e a nossa reputação?

— Que é que tem?

— Como, o que é que tem? Não podemos andar junto com aquela gordinha.

— Olha, se vocês não quiserem andar, o problema é de vocês! Eu vou andar com ela a partir de agora, se não vocês não estão afim, andem sozinhas! — e saiu a passos largos pelo corredor, adiantando-se das outras duas.

Rafaela e Vanessa olharam-se incrédulas no que estava acontecendo.

— Ei, May, espera.

Enquanto, na aula de português do terceiro ano, o clima pesado imperava dentre as três amigas, Fernanda, na aula de história do primeiro ano, era só felicidade.

Eram duas horas da tarde. Mayara, estirada no sofá, controle remoto na mão, assistia televisão, mostrando desinteresse em todos os programas que passavam. Tédio. O celular tocou.

— Alô.

— Oi, Mayara? É a Fernanda.

— Oi, querida. Vai vir aqui em casa?

— Posso?

— Claro, claro. Estou precisando de companhia.

— Como faço para chegar até aí?

— Hum, espere, você tem algum dinheiro?

— Alguma coisa, por quê?

— Quanto?

— Sei lá, uns quarenta reais.

— Ótimo! Me encontre no centro, em frente ao chafariz da sete de setembro, daqui a meia hora. Pode ser?

— Pode.

Faltavam quinze para as três, quando as duas encontraram-se no lugar marcado.

— O que nós vamos fazer? — perguntou Fernanda meio sem jeito.

— Ora, vamos às compras.

— Com quarenta reais?

— Claro!

— Vamos comprar o que?

— Roupas, o que mais?

— Com quarenta reais?

— Claro, sua boba, é só saber procurar.

Foram a varias lojas do calçadão, Fernanda surpreendeu-se ao constatar que Mayara só comprava suas roupas em lojas baratas, e não nas elegantes e caras boutiques dos shoppings, como ela pensara. Mayara não desistiu após dar-se de conta que não era fácil encontrar roupas legais no tamanho GG, disfarçou bem, da amiga, sua frustração e seguiu procurando. Eram quase seis horas da tarde, quando encontraram a loja ideal. Fernanda estava um pouco perdida naquele novo mundo em acabara de entrar. Mayara, após pegar um bocado de roupas nas araras, arrastou-a para os provadores, onde a fez experimentar todas elas. Após vários testes, encontraram um conjunto perfeito: um vestido floral comprido e uma curta jaqueta jeans. Fernanda ficou pasma com o reflexo que viu no espelho, adorou a maneira como o vestido lhe escondeu as gordurinhas, e como havia ficado bonita. O total das compras foi sessenta e cinco reais, Mayara completou o resto do dinheiro e depois ainda pagou o sorvete.

No final do dia, quando cada uma tomou seu ônibus para casa, Fernanda era pura felicidade e gratidão. Mayara estava contente por ter feito sua nova amiga, feliz.

Na manhã seguinte, Mayara cumpria sua rotina. Ao descer no ponto de ônibus constatou que além de Rafaela e Vanessa, Fernanda também a esperava (vestindo as roupas novas), só que mais deslocada, sem conversar com as outras duas.

— E aí amiga, me conta. O que fez ontem?

— Saí com a Fernanda. — as duas receberam incrédulas, a notícia. — Fernanda, vamos. — convidou a outra para acompanhá-las.

No caminho até as salas de aula, Mayara notou que Fernanda sentia-se deslocada e envergonhada diante das outras duas amigas. Tentava em vão, puxar algum assunto que a unisse ao grupo. Não adiantava, Rafaela e Vanessa não a aceitavam. Dividiu o horário do intervalo com as duas antigas e com a nova amiga. As três ao mesmo tempo não estavam dando certo.

O restante da semana seguiu da mesma maneira, Mayara dividindo seu tempo entre as amigas. Novas tentativas frustradas de uni-las aconteceram. Na manhã de sábado, Mayara tentava conseguir a autorização da mãe, para ir à festa na casa do Pedro.

— Filha, você sabe que não me agrada você ir nestas festas nas casas dos garotos.

— Mas mãe, todo mundo vai estar lá.

— Não sei, não sei.

— Olha, vamos fazer o seguinte: A festa está marcada para começar as sete, prometo que, hum... A uma eu pego um ônibus pra casa.

— Quero você em casa até a meia-noite.

— Meia noite e meia?

— Fechado, mas...

— Iuupii! Valeu mãe, valeu!

— Mas, você voltará de taxi, viu?

— Ta bom, ta bom. Valeu mãe.

Mayara correu para o quarto para começar a escolher a melhor roupa e para ligar para as amigas avisando que iria à festa. Depois de falar com Vanessa e Rafaela, ligou para Fernanda para convidá-la para a festa. Fernanda disse que não podia, iria viajar com os pais para casa da avó em outra cidade.

Passou horas se arrumando, tomou banho, fez as unhas, maquiou-se. Após tudo pronto, roupas escolhidas, ficou na internet o restante da tarde, até que chegasse a hora de sair.

— Se cuida, filha.

— Não esquenta mãe, até mais tarde.

— Meia noite e meia, heim. Telefona antes de sair de lá.

— Ta bom, tchau mãe.

Chegou as sete e quinze na já lotada festa. Casa liberada, piscina, som alto, muita bebida, dezenas de adolescentes dançando e se pegando por todos os lados.

— E aí May, estávamos te esperando.

— E aí meninas. — cumprimentou, desaprovando as roupas demasiadas curtas que as duas usavam.

A festa rolou como todos esperavam. Aquele tipo de evento era a válvula de escape do stress adolescente, lá, todos exorcizavam seus demônios, curtiam a melhor fase da vida da melhor maneira possível. Mayara assistia todos embriagando-se, mas não sentia-se excluída, sempre soube se divertir sem beber. Rafaela e Vanessa arrumaram parceiros e ficaram de pegação num canto. Mayara foi caminhar mo pátio, perto da piscina. De repente sentiu-se só, sentiu saudade do seu quarto, da sua cama, saudade das longas noites comendo pipoca e assistindo filme com a mãe (coisa que não fazia há um longo tempo). Resolveu ir embora. Quando caminhava em direção ao ponto de taxi na outra quadra, ouviu alguém chamar-lhe.

— May, espera. — Bruno vinha pela rua, meio cambaleante, garrafa de vodka numa mão, cigarro na outra. — Quer falar sobre o outro dia?

— Não, já to indo embora.

— Ih, May, qual é?

— Se liga Bruno. Você só tem dezoito anos e já ta se destruindo, cara.

— Como, se destruindo?

— E ainda pergunta? Larga esse cigarro, isso é nojento. Enquanto você não largar esse vício eu não quero nada com você, e além do mais, você ta aí, bêbado que não consegue nem ficar em pé. Você ta fazendo papel de ridículo sabia?

— Ridícula é você que se acha a gostosa, mas que qualquer um pega a hora que quer.

— Ótimo! Agora que já sabemos o que um pensa do outro, não temos mais nada pra conversar. Agora me deixa ir embora.

Mayara tentou sair caminhando, mas foi impedida. Bruno a pegou pelo braço e deu um violento puxão. Ela gritava pedindo para que ele a soltasse, mas foi em vão. Bruno, segurando-a pelo braço, arrastou-a através da rua deserta. Os gritos desesperados da garota não foram ouvidos por ninguém. Bruno estava tomado por um ódio até então desconhecido por ele próprio, o desejo carnal incentivado por duas garrafas de vodka o fez arrastar a garota para um mato perto dali. Bateu com força no rosto da garota, que já não tinha mais forças para pedir socorro, a jogou no chão, no meio do capim seco e começou a arrancar suas roupas. Violentou-a uma, duas, várias vezes até sentir-se saciado. Após acabar, começou a socar o rosto de Mayara até que sentiu um estalo de algo quebrando (era o maxilar da garota). Acendeu um cigarro e deu duas ou três tragadas, enquanto observava a menina, desacordada no meio do capinzal, seminua e com o rosto desfigurado. Jogou o cigarro ainda aceso perto do corpo da menina e saiu correndo, cambaleante. A algumas quadras dali, entrou no carro que o pai havia lhe emprestado para ir à festa, girando as chaves, fez roncar o motor do vectra e saiu pelas ruas desertas a toda velocidade. A brasa consumia o cigarro vagarosamente, em contato com o capim seco, começou a formar-se uma pequena chama.

Santos, o sargento da brigada militar de ronda naquela noite, comprava um café na loja de conveniências dum posto de gasolina na Avenida Ferreira Viana. Voltou à viatura e pediu para que seu colega, Sargento Blaas dirigisse um pouco. Saíram. Após cinco minutos de ronda rotineira, Santos avistou um principio de incêndio no matagal às margens da Rua do Consulado.

— Esses viciados filhos da puta! É a segunda vez que ateiam fogo aqui. Blaas, encoste.

Desceram da viatura e correram em direção ao incêndio. Santos portava a arma em punho e Blaas levava o extintor. Só quando chegaram a dois metros do pequeno incêndio, notaram o que estava acontecendo. O corpo desacordado da garota, jogado próximo às chamas, literalmente assava com o calor. Os cabelos já haviam queimado.

— Deus do céu! Blaas, apaga! Apaga logo!

Blaas teve um princípio de vômito, Santos arrancou o extintor das mãos do colega e apagou o incêndio. Sentiu o pulso da garota.

— Ainda respira. Vai lá, porra! Chama a ambulância!

Poucos minutos depois, chegava a ambulância. Os médicos fizeram bem seu serviço, trabalharam rápido, e pouco tempo depois, Mayara (sempre desacordada), já estava sendo atendida no pronto socorro municipal. Após tudo acabado, os dois policiais sentaram-se na viatura.

— E aí, Blaas, ta melhor?

— Mesmo depois de vinte anos de serviço, tem coisas que agente nunca acostuma.

— É parceiro, essa vida é uma merda.

O rádio interrompeu a conversa, um Vectra preto havia se desgovernado em alta velocidade e invadido uma loja no centro. O garoto que dirigia havia morrido.

— Eu não disse que essa vida era uma merda? Outro garoto. — pegou o rádio. — Aqui é o Santos, não podemos agora, estamos na cena de um crime na Rua do Ouvidor. Tentativa de homicídio e possível estupro. Chama a Civil.

Valéria, a mãe de Mayara, estava no sofá assistindo televisão. Dava mais atenção ao relógio que já marcava quinze para a meia-noite do que para o filme que passava. Pensou em telefonar para a filha, mas hesitou, resolveu esperar um pouco mais. A filha ainda tinha quarenta e cinco minutos para chegar em casa. Passado mais algum tempo, o toque do telefone põe fim à indecisão de Valéria, mas trás em troca um mau presságio. Respirou fundo e atendeu. As palavras do interlocutor atingiram-na com incrível impacto. O telefone caiu, suas pernas desobedeceram, tudo girou. Desmaiou.

Recobrou os sentidos alguns minutos depois. Demorou um momento para que entendesse o que acontecia. Quis atirar-se na cama e apenas chorar, mas não se permitiu, sua filha estava sozinha e em apuros, precisava dela. Tinha que ser forte, ser forte por sua filha. Seria. Vestiu um casaco qualquer e correu para o hospital.

No hospital, quando Valéria soube o estado em que a filha se encontrava, foram necessários cinco enfermeiros para segurarem-na e impedi-la de entrar na sala de cirurgia. Uma enfermeira trouxe um calmante. Valéria engoliu o comprimido, sentou e esperou. Agora podia chorar.

Valéria e Mayara só tinham uma à outra. Não tinham parentes vivos e o marido de Valéria havia abandonado-a durante a gravidez. A mulher esperou, só, as seis longas horas para receber a primeira notícia da filha. Um jovem médico apareceu na ala de espera e, consultando um formulário, perguntou quem era o acompanhante de Mayara Oliveira. Valéria prontificou-se. O médico contou o estado em que a menina chegara ao hospital. Valéria recebeu a notícia como uma punhalada. Tentou ser forte, o médico acalmou-a dizendo que a cirurgia correra bem. Aconselhou-a ir para casa, mas foi inútil, Valéria voltou a seu assento e esperou.

Alguns dias depois Mayara fora transferida para um quarto comum. Só então Valéria pôde ver a filha. Entrou no quarto e aproximou-se devagar do leito. Quase não reconheceu sua filha que mais assemelhava-se a uma múmia envolta em bandagens. Mayara perdera a visão do olho direito e tinha a metade do rosto desfigurado por queimaduras. Os cabelos haviam desaparecido e não nasceriam nunca mais. Como a filha estava desacordada, Valéria permitiu-se chorar. Chorou por longos minutos ao lado da filha, mas, naquele momento, agradeceu a Deus por sua filha estar viva, e jurou não chorar mais dali para frente. Seria forte por ela e pela filha.

Das amigas de Mayara, a única que ia regularmente ao hospital visitá-la era Fernanda. Vanessa e Rafaela, após terem visto o rosto de Mayara na primeira visita, não voltaram. Fernanda era quem ficava com Mayara para Valéria poder ir trabalhar. Leitora regular e possuidora de grande acervo bibliotecário, escolhia entre seus livros preferidos para ler para a amiga. Começou com uma coletânea de crônicas humorísticas de Luís Fernando Veríssimo, mas a pedido de Mayara, que queria algo mais empolgante, começou a ler romances policiais e de suspense. Mayara, que nunca lera um romance na vida, ficou fascinada com a inteligência e as divertidíssimas teorias de vida de Fermín Romero de Torres, personagem criado por Zafón em “A sombra do vento”, virou fã, também, dos engenhosos casos desvendados por Hercule Poirot. Estava agradecida por ter Fernanda como amiga. Não sabia o que faria sem ela. Era bom ter a mãe como companhia, mas Fernanda era sempre mais divertida, era naqueles momentos que conseguia esquecer-se um pouco da coisa horrível que havia acontecido. Não lembrava-se de nada após o encontro com Bruno na rua, mas lembrava-se da dor e do monstro que agora o espelho refletia.

Semanas depois Mayara estaria em casa. A polícia já havia pegado o depoimento da garota e pôde ligar Bruno Campos, o garoto que havia morrido no acidente de carro, com seu estupro. Com apoio da mãe e da amiga Fernanda, Mayara pouco a pouco retornava a sua vida normal. Valéria procurava tratar a filha normalmente, como se nada tivesse mudado. Não a tratava como uma pessoa doente, até porque, ela não era. Sua saúde estava em perfeitas condições, apesar das cicatrizes que restaram no corpo. Valéria conversou com a filha sobre a possibilidade de procurarem um psicólogo, Mayara disse não ser necessário. A medida do possível, tudo corria bem, mas agora viria a parte mais difícil: o retorno à escola.

Apesar do calor, Mayara vestiu um casaco de mangas longas com capuz. Queria esconder as cicatrizes dos braços e do rosto. Olhou para o espelho, agora já não sentia orgulho do reflexo. Agora via um monstro. O café em companhia da mãe foi silencioso. Ao contrário de antigamente, comeu as torradas que mãe preparou. Após a refeição, saiu e foi para o ponto de ônibus. Poucos minutos de espera e lá vinha ele. Era estranho, sentia medo de subir no veículo... Mas subiu. Como sempre, estava lotado. Em pé em meio ao aglomerado de pessoas, não sentiu nada fora do comum. Até aqui tudo bem. Quando desceu, em frente à escola, Fernanda a esperava. Não sentiu falta das duas antigas amigas. Fernanda sorria.

— E aí May, está nervosa?

— Um pouco.

— Vai dar tudo certo.

— Tomara.

E foram. Fernanda pensou em acompanhar a amiga até a porta da sala no segundo andar, mas resolveu não fazê-lo. Achou que era uma coisa que Mayara teria que fazer só. Então, como antigamente, dividiram-se em frente às escadas. Mayara subiu sozinha. As cantadas que antes os garotos arriscavam, agora transformaram-se em olhares desdenhosos, Repugnantes. Mayara consultou a agenda, agora tinha aula de química e já estava três minutos atrasada. Tudo o que precisava era um xingamento por parte do professor. Bateu três vezes à porta e entrou.

— Já deveria saber que não deveria bater à porta quando... — o professor freou a repreensão quando olhou para o rosto irreconhecível da menina. Engoliu em seco e trocou suas palavras. — Ah, querida, seja bem vinda de volta... Pode sentar-se.

Mayara caminhou sob olhares de horror dos colegas que confabulavam entre si. A maneira diferente em que o professor acabara de agir, foi muito pior que mil xingamentos. O famigerado professor rabugento agiu gentilmente com um aluno pela primeira vez em sua vida. Naquele momento Mayara sentiu-se inferior a todos os outros, sentiu-se diferente. Tudo o que não queria. Sentou-se próxima à Vanessa e Rafaela, trocaram um “oi” superficial como se fossem desconhecidas. Não conversaram mais. Aquela foi a aula mais longa e torturante que Mayara já assistira.

O toque do intervalo foi como um sinal de libertação. Mayara saiu para o pátio da escola com incrível rapidez. Correu para um canto, sentou-se no chão e começo a chorar. Fernanda a encontrou ali, no mesmo canto onde ela mesma estava quando conhecera sua única amiga. Os papéis estavam invertidos. Fernanda sentou-se no chão, ao lado da amiga.

— O que foi, May, pó que ta chorando?

— Eu não consigo. Não consigo... Todos pensam que sou uma aberração, um monstro.

— Bobagem... Ei, lembra o que você me disse quando nos conhecemos? “Eles sãos uns idiotas... A beleza que vale é a interior”. E você, May, é a pessoa mais linda que eu conheço. É minha única amiga e eu amo você. Não desista assim tão fácil. Eu e você sabemos que vai ser difícil, mas eu vou estar sempre do seu lado e, juntas, vamos conseguir.

Abraçaram-se por longo tempo. Aquele “oi” na aula de química, seria a última palavra que trocaria com Rafaela e Vanessa. Agora as duas faziam de tudo para evitar Mayara. Não queriam andar com uma pessoa como ela.

Dia após dia a convivência com os colegas de escola ficava mais difícil. Exceto sua mãe e Fernanda, ninguém mais gostava dela. Não como antes. Os que não sentiam repugnância, sentiam pena. Esta pena era o que mais a feria, era o que mais a fazia sentir-se diferente. Sentia-se como um animal. Numa tarde chuvosa, Mayara despiu-se e ficou horas nua em frente ao espelho. Refletiu toda sua vida, relembrou como era antes e como era agora. Tudo o que havia mudado. Tudo o que perdera. Pensou em como seria sua vida dali por diante, como seria difícil arrumar um emprego... Um marido. Resolveu desistir.

Ainda nua, foi até o banheiro e pôs a banheira a encher. Voltou ao quarto e, ao som dos relâmpagos que cortavam o céu e da chuva que batia com violência no telhado, começou a escrever duas cartas: uma para sua mãe e outra para Fernanda. Cartas de despedida. Foi até a sala para deixar as cartas sobre a mesa de centro. Quando largou os papéis sobre a mesa, notou um bilhete deixado pela mãe...

“Filha, vou sair mais cedo do trabalho hoje e locar filmes para assistirmos. Convide a Fernanda.

Beijos.”

Mayara leu várias e várias vezes o bilhete. Sentou-se no chão e abraçando as próprias pernas, começou a chorar. Chorou como nunca havia chorado antes. Notou a água oriunda do banheiro invadir a sala, mas ficou ali, imóvel. Pensou nas palavras de Fernanda relembrando a sua própria teoria sobre beleza interior. Pensou em como seria injusto com sua mãe encontrar a filha dentro da banheira com os pulsos cortados. Não. Não desistiria. Não iria ser fácil... Iria sofrer... Mas não desistiria.

Reagiu como que tivesse levado um choque. Correu para o banheiro para desligar a água. Foi até o quarto e vestiu-se rapidamente. Estava encrencada, precisava explicar para a mãe como havia inundado a casa toda... Olhou para o espelho e... Sorriu!

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Cemitério de Formigas

"Nunca, por nenhuma razão, se poderia desejar que a dor aumentasse. Da dor, só se podia desejar uma coisa, que parasse. Nada no mundo era tão horrível como a dor física. Em face da dor não há heróis, não há heróis, ele pensou e tornou a pensar, torcendo-se no chão, segurando à toa o braço esquerdo invalidado"

– 1984, George Orwell

Texto retirado para revisão.

sábado, 13 de junho de 2009

Prenúncio de suspiro — In Memorian

Texto retirado para revisão.





terça-feira, 28 de abril de 2009

Duas Dúzias de Rosas


Copyright © 2009 - Todos os direitos reservados a: Thábata Thomé de Deus


Ninguém gosta de ter que levantar para atender o interfone no meio de uma manhã de sábado, mas é uma coisa que tem que ser feita quando se mora sozinha em um prédio onde o porteiro não mede esforços para fazer com que os moradores atendam a seus chamados.

— Bom dia, dona Clara. Chegou o cartão aqui pra senhora, aquele mesmo menino veio trazer — Disse o porteiro ancião de voz rouca e fala acelerada.

— Ótimo, ele ainda tá aí, certo?

— Não, senhora. Eu tentei segurar ele conforme a senhora me pediu. Mas o moleque parece que adivinhou e não entrou dessa vez pra entregar, enfiou por debaixo do portão da frente e saiu correndo. Quando fui até lá ele já tava virando a esquina. Desc...

— Tudo bem, sr. Alcides. Amanhã eu mesma devo ficar esperando por ele aí na portaria, obrigada de qualquer jeito. Tem como colocar no elevador pra mim?

— É pra já, tá subindo.

Encaixou o interfone na parede e foi se arrastando até a mesa do telefone onde pegou a chave do apartamento e abriu a porta pesada ao seu lado, revelando um corredor escuro e pequenino, que se iluminou com a luz fraca típica de um dia nublado saída de seu apartamento. O elevador antigo e de movimento quase pesaroso, parou no quinto e último pavimento totalmente vazio, exceto por um envelope de cor marfim colocado pelo porteiro no canto abaixo do painel com os números dos andares. Sem lacre nem nada que o fechasse, o envelope de tamanho médio apresentava nada além do destinatário escrito em caligrafia firme e impecável, tornando impossível dizer se pertencia à uma mulher ou a um homem. O conteúdo era curto e direto, escritas com a mesma caligrafia do envelope, as palavras do cartão rosa claro ainda lhe davam arrepios:

"Quando você vai sorrir pra mim?"

Sentou na poltrona velha que tinha trazido da casa dos pais, respirou fundo e exalou o cheiro das brincadeiras dela com o irmão, cheiro da sua infância, cheiro de alguma coisa que se perdeu sem que ela se desse conta. Depois de não mais do que dois minutos, levou as mãos à cabeça e prendeu os cabelos escuros que iam até os ombros num coque desajeitado.
Releu os dizeres, mesmo tendo decorado cada uma daquelas palavras desde o primeiro cartão. Sentiu-se uma desvairada por isso, mas por vezes se viu com vontade de ouvir a voz por trás daquelas palavras, perguntou-se se viria a escutar aquela pergunta inquietante que lia diariamente há semanas. Pegou o cartão e colocou-o junto aos outros tantos dentro de um porta-trecos rosa que enfeitava sozinho a mesa de centro.

— Hoje é dia de café-da-manhã de verdade — Falou consigo mesma, hábito adquirido desde que fora morar sozinha e que provavelmente não mais seria capaz de abandonar. Assim como o de tomar café na mais tradicional confeitaria da cidade todos os sábados sob quaisquer circunstâncias.

Foi até o banheiro, lavou o rosto e contemplou a face limpa e bronzeada no espelho. Gostava de quando os dias de praia lhe permitiam ganhar um aspecto mais saudável e mais carioca do que a sua palidez original. No quarto, garimpou um jeans Colcci velho e surrado e uma regata branca, vestiu ambas as peças rapidamente e foi procurar o primeiro par de havaianas que avistasse. Depois de prender o cabelo num rabo de cavalo, pegou a carteira e saiu deixando para trás o apartamento bagunçado e invadido pelo ar fresco da manhã.

Passou pela portaria dando apenas um aceno ao porteiro, correspondido com um sorriso brincalhão. Depois de pegar um ônibus não muito cheio, se viu no centro da cidade. Foi andando devagar, sentindo seus pés pesarem mais que o normal. O trajeto do ponto onde saltou até confeitaria Colombo era relativamente curto mas demorou o suficiente para seu estômago roncar mais de três vezes.

Escolheu uma mesa no salão do primeiro andar, perto de uma das janelas. Sentou e se deliciou com os aromas de seus doces preferidos todos misturados. Fez um pedido proporcional à sua fome e devorou sem se preocupar com as regras de etiqueta quatro Torradas Petrópolis, uma porção de Rivadávia e meia porção de Petit-Fours.

Feito o seu café da manhã, pediu a conta. Sentiu no instante em que o garçom se afastou para buscar a conta que estava sendo observada, percorreu o salão com os olhos e se deparou com um sujeito alto, esguio e de feições claras e aristocráticas sentado no extremo oposto do lugar. Vestia uma calça jeans escura, sapatos sociais impecavelmente engraxados e uma blusa de linho branca com riscas de giz. Comia calmamente pequenos torrões de açúcar acompanhados de um Latte Macchiato, com os olhos ainda pousados sobre Clara. Sem nenhum constrangimento aparente, o homem sustentou sem esforço o olhar mais hostil que a moça conseguira produzir.

— Senhora, a sua conta. — Disse o garçom em tom formal, mas que soou aos ouvidos de Clara como um berro assustador.

— Ah, sim. Vou pagar no cartão, pode incluir os dez por cento — E retirou da carteira que estava em cima da mesa, um cartão prateado que entregou ao garçom — Débito, por favor.

Depois de digitar a senha e se despedir do garçom, levantou-se ruidosamente e parou alguns instantes para olhar para o homem que ainda não havia deixado de encará-la. Não sabia se era uma impressão estranha típica de um dia igualmente estranho como aquele, mas parecia que o tal sujeito não piscara nenhuma vez até então, e assim continuava. Quando não mais foi capaz de olhar para o homem mantendo sua expressão neutra, decidiu dar de costas e encarar seu compromisso das manhãs de sábado. Olhou para trás uma vez mais certificando-se de não estar sendo seguida por aquele que podia ser um louco, um maníaco ou uma ameça semelhante apesar de aparentar exatamente o contrário. Através do vidro pelo lado de fora da confeitaria, contemplou o homem que ainda sentado continuava a seguir seus passos com o olhar, mas dessa vez sorrindo lindamente, como há tempos ela não via ninguém sorrir-lhe. Sentiu vontade de voltar e se aproximar daquele sorriso. Tocá-lo talvez, só para sentir a textura ou ouvir o som que ele tinha. Mas continuou a andar e desviar de alguns transeuntes, tentando tirar do pensamento aquele sorriso convidativo.

Ficou parada durante alguns minutos na Avenida Rio Branco, procurando por um dos "amarelinhos". Um deles chegou e o motorista baixinho e de pele muito rosada quase soltou um grunhido de alegria quando pediu-lhe que a levasse até o São João Batista.

— Sábado de manhã não é hora de visitar gente morta, moça. Não prefere ir pra praia? Esse mormaço às vezes queima mais que o próprio sol... E Copacabana hoje tá liberada pro banho. — Disse o motorista com voz cansada e gentil.

— Não, brigada. Na verdade nem é exatamente uma visita, vou só conferir se as flores que eu coloquei pro meu noivo no último sábado ainda estão lá. Algum delinquente desalmado anda tirando toda semana, cada uma das rosas que eu coloco. — Disse a ninguém em especial, cruzando os braços e aproximando o rosto da janela por onde um vento cortante entrava.

— Pois é, hoje ninguém mais respeita a memória dos falecidos não. Imagine você que, roubaram até uma escultura de gesso que mandei fazer pra enfeitar a lápide de minha falecida Mirtes. Um absurdo...

— Sim, um absurdo mesmo. — Um silêncio instaurou-se e cada um dos ocupantes do carro ficou imerso em seus próprios pensamentos e lamentações. Durante o resto do caminho, o motorista pigarreou algumas vezes mas não esboçou vontade de travar outra vez um diálogo, falta de vontade compartilhada por Clara.

Virando a esquina na rua General Polidoro, avistou o portão tantas vezes visto por ela num curto espaço de dois anos. A visão da grade que cercava a famosa necrópole resultava, como sempre, numa série de "beliscões internos", como se algo pinçasse a pele de seu tronco e de seus braços de dentro para fora. O táxi parou alguns metros antes da entrada em forma de arco, de onde duas senhoras saíam e um adolescente entrava.

— Deu R$ 38,00, dona. — O taxista encostou os dedos redondos no taxímetro e virou para trás esperando pelo dinheiro.

— Toma, moço. Brigada, tenha um bom dia. — Estendeu uma nota de R$ 50,00 um tanto amassada e esperou pelo troco.

— Pra senhora também, moça.

Desceu do carro e enfiou sem nenhum cuidado o troco no bolso da calça, respirou fundo e sentiu seu cérebro congelar quando o cheiro peculiar daquele lugar invadiu suas narinas. Percebeu que chegava a hora de se aproximar da entrada e seguir o ritual quase técnico que adotava para conseguir atravessar boa parte do cemitério sem se contorcer com calafrios. O cemitério São João Batista em si, seria um lugar agradável se não fosse pelo fato de ser o que é, ou seja, a moradia de milhares de decujus. Detentor de uma arquitetura magnífica e obras de arte espalhadas por cada canto (desde as mais humildes lápides até o Mausoléu da Academia Brasileira de Letras). De fato, o lugar abrigava túmulos de figuras eminentes da História e isso era o que distraía Clara durante o percurso.

Os primeiros corredores do cemitério lembravam impiedosamente de como o pai de Andreas fez um comentário frio e infeliz no dia do enterro do filho, em meio às lágrimas da esposa, quando os três por ali passavam: "— Ainda bem que conseguimos colocar ele aqui, mulher! É o Père Lachaise carioca: estão enterrados aqui, entre outros, José de Alencar, Benjamim Constant, Floriano Peixoto, Oswaldo Aranha, Machado de Assis, Ari Barroso, Nelson Rodrigues, Miguel Couto, Luis Carlos Prestes, Carmem Miranda, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Cazuza, Clara Nunes, Chacrinha, Santos Dumont..." Citando até ficar sem fôlego uma por uma, todas as personalidades que lhe ocorreram e que debaixo de seus pés agora jaziam.

Ao longo de dois anos de passeios pelo lugar, alguns ítens foram incluídos em seu catálogo de manias.

— Sou senhora do meu e fui criada pra uma boa sorte — Falou em voz quase inaudível, olhando com satisfação para o Jazigo do ator Cláudio de Souza que retratava as três Moiras, divindades mitológicas que determinavam o destino.

Alguns anjinhos lindos e nus depois, parou diante da parte traseira de um túmulo qualquer e estendeu as duas mãos formando uma espécie de moldura. — Isso daria uma foto linda. — Enquadrando em seus dedos de unhas roídas, a imagem de algumas esculturas maltratadas pelo tempo com o Corcovado ao fundo.

Virando à direita, passou os olhos pelo túmulo de Nelson Rodrigues que nem parecia estar em um cemitério. A estátua do escritor brilhava e tinha um tom de ouro velho. Sempre que por lá passava, colocava a mão sobre a máquina de escrever do saudoso velhinho.

— Ainda escrevendo né, sr. Nelson? Assim o senhor vai é morrer de velho! — Riu e se sentiu bizarra por ainda não ter cansado dessas brincadeiras solitárias com os finados ilustres. Tudo bem que era uma forma de tornar menos sombria a passagem no meio do descanso eterno alheio, mas ainda assim era macabro fazer as mesmas piadinhas todas as vezes.

Continuou andando pelo mesmo corredor, avistou alguns metros adiante o lugar de seu amado. Era curioso como sentia um cheiro forte de sândalo toda vez que se aproximava de lá. Criou inúmeras hipóteses acerca da origem daquele cheiro, como viúvas das lápides vizinhas que gostavam de perfumar o ambiente, algum truque de sua mente não muito equilibrada, etc.

Seguiu pensando no cheiro até chegar em frente a ele, em pedra cor de grafite com uma foto envelhecida, lá estava o lugar onde dois anos mais cedo ela se despediu de Andreas e do futuro que tinham construído e que esperavam para viver. Constatou que como o esperado, as rosas não estavam lá. O jarro estava vazio e ainda molhado, a água havia sido jogada fora recentemente com a retirada das flores. Sentiu seu rosto ferver e se contorcer numa careta de raiva e cansaço. Deu meia volta e fez o caminho inverso, ignorando todas as coisas que gostava de admirar e para as quais sempre dava seu sorriso amargo.

Pegou um táxi em frente à necrópole que parecia expulsá-la de lá naquele dia, e pediu a um motorista de tipo físico comum, feições comuns e diálogo também comum que a levasse para a Barata Ribeiro. A viagem de volta para casa foi mais como um borrão confuso, não parou para reparar muito em nada. Só se deu conta de que se aproximava de casa quando virou na esquina da Pompeu Loureiro com a Barão de Ipanema. Desceu do táxi depois de pagar a corrida e deixar o troco para o motorista que convenientemente não era muito de conversa.

Ao adentrar a portaria, se deparou com o porteiro discutindo com uma das moradoras mais mal quistas que o prédio tinha. Não conseguiu captar o enredo da discussão, mas com toda certeza envolvia o cachorro ao qual ela chamava de "mi hijo" com um sotaque forçadamente espanhol. Deu um boa noite ignorado pelo calor da discussão e entrou no elevador torcendo para que esse chegasse o mais rápido possível.

Na porta do apartamento, pegou as chaves no bolso esquerdo da calça e entrou. Olhou para a janela diretamente e percebeu o que não tinha visto esse tempo todo em que estivera na rua: O sol começava a brilhar timidamente. Deu de ombros e foi até o quarto onde tirou a calça jeans e jogou-a em cima de uma pilha de livros de astrologia. Abriu o armário e tateou a parte de cima que não alcançava nem na ponta dos pés, até achar a caixinha de madeira que queria. Pegou sem olhar direito e levou para a sala, onde sentou e depositou o objeto nas coxas nuas. Abriu, sentiu vontade de espirrar mas não o fez. Remexeu com cuidado fotos, bilhetes, papéis de bombons e um recorte de jornal. O recorte era a única coisa sem cor dentro da caixa e esse fato a fez pensar que talvez fosse melhor deixar a notícia daquele dia, naquele dia. Não ia abrir depois de dois anos tomando o cuidado de não se auto-mutilar com aquelas imagens e aquelas palavras. Deixou no fundo da caixa o recorte e voltou a se divertir com as fotos. Todas deles dois sorrindo, mostrando as línguas coloridas, se beijando ou se abraçando. Reviveu cada um daqueles segundos, depois guardou de novo e colocou a caixa por cima dos discos de vinil na estante da sala.

De repente se sentia cansada como quem acumula semanas de esforço intenso e contínuo, sentiu seus músculos queimarem e se arrastou até a cama, onde caiu e adormeceu. Suada, de calcinha, blusa e cabelos semi-presos.

Acordou na manhã seguinte com o mesmo barulho incessante do interfone. Dessa vez não atendeu, não teve presença de espírito suficiente para aceitar as desculpas esfarrapadas do porteiro. Simplesmente pegou seu roupão lilás velho e soltando fiapos e sem calçar nada desceu até a portaria e pegou o cartão que o porteiro deixara na bancada central. Subiu novamente no elevador lento, sentindo como se seu corpo voltasse a dar sinais de normalidade, sem as dores da noite anterior e com uma sensação de leveza. Com o envelope de sempre na mão, entrou em casa e sentou calmamente na poltrona.

— Cara, isso tá começando a me irritar seriamente. Mas que droga de sorriso é esse e que tipo de desocupado perde tempo me mandando esse mesmo cartão tantas vezes? — Disse em voz alta, tentando se convencer de não mais buscar os cartões, deixá-los amontoados na portaria até que o tal remetente desistisse. Abriu o envelope e tirou o cartão, se assustando com a mudança no tamanho do conteúdo e em uma fração de segundo sentiu pontadas no estômago ao ver que as palavras de sempre foram substituídas por um local e um horário.


"Largo da Carioca - Estação do Bonde de Santa Tereza, 16 horas."


— Hummmmm, o Bonde tá sempre cheio. Seja quem for, não vai tentar nada por lá e eu preciso saber quem é e dar um fim nessa babaquice. — Disse ao mesmo tempo em que deixava o cartão em cima da mesa de centro e levantava.

Dois iogurtes depois, decidiu que daquela cozinha não sairia fumaça naquele dia. Seu organismo não ia mesmo aceitar comida diante da expectativa do encontro que teria naquela tarde. Uma olhada no relógio revelou que sete horas ainda se passariam até o horário arbitrariamente imposto pelo autor do cartão, então resolveu deitar para descansar até a hora de se preparar para o encontro.

Acordou pouco depois das duas da tarde com a sensação de que dormira demais. Levantou rápido e sentiu-se tonta por causa do movimento brusco do despertar. Procurou o celular do outro lado da cama de casal e verificou que já podia se arrumar caso quisesse ser pontual. Tomou um banho rápido e vestiu um vestido leve de algodão, que ela achava ser apropriado para as tardes de domingo. Saiu com os cabelos molhados ainda pingando nas costas e com uma bolsa pequena no ombro direito.

Pegou um ônibus que a levou mais rápido do que o esperado até o Largo da Carioca, de onde partia o Bonde. Entrando na estação, olhou instintivamente ao redor procurando por alguém que lhe fizesse um sinal ou algo do tipo. Em vão, sentou no banco de madeira na plataforma e ficou a observar o espaço vazio que em alguns minutos, como informava o painel na entrada, seria ocupado por um dos charmosos veículos que faziam o trajeto pelos Arcos da Lapa até o bairro de Santa Tereza.

Depois de não mais do que cinco minutos sentada no banco frio e duro, sentiu um forte cheiro de sândalo que demorou a reconhecer. Em seguida percebeu que pelo seu lado esquerdo crescia uma sombra e virou-se levantando a cabeça. Quem a olhava com olhos de pupilas líquidas e indecifráveis era o mesmo homem da confeitaria, mas agora sem o sorriso que chamou tanto a sua atenção.

— Ah, então era você esse tempo todo? — Disse sem alterar muito a voz, tentando permanecer calma.

— Se fala dos cartões, era eu esse tempo todo sim. — Falou o homem, revelando uma voz macia e suave.

— Tá. E você tá me seguindo, né? Há quanto tempo? Por que não falou comigo na confeitaria?

— Seguindo em termos, não invadi a sua privacidade nem nada. Só andei te observando.

— Me observando por que? Que você quer de mim? A gente nem se conhece, cara. Você chega falando como se fosse a coisa mais natural do mundo que me segue em termos, me observa. Dá pra explicar isso direito e acabar com essa situação logo? Eu tenho preguiça profunda de quem fica insinuando coisas, falando em meias palavras. E também não disponho de muito tempo pra joguinhos.

— Olha, eu tenho motivos pra fazer o que tô fazendo. E eles não estão em questão, pelo menos não por agora. Se você puder ser gentil e esperar alguns instantes, eu vou te mostrar o motivo de você estar aqui e de ter recebido todos aqueles cartões meus.

Ao engolir em seco todas aquelas palavras, ouviu o silêncio ser interrompido pelo barulho do Bonde que se aproximava. Entraram e sentaram um ao lado do outro, tomando o cuidado de não se encostarem. O passeio foi silencioso e tenso, os dois que estavam longe de parecerem um casal, permaneceram olhando em direções opostas durante todo o trajeto. Após percorrerem a terceira ladeira no bairro que dava nome ao Bonde (ou o contrário), o homem levantou e se dirigiu à saída. Quando o Bonde parou no ponto ele desceu seguido por ela.

Andaram por uma calçada irregular e com tufos de grama dispostos aleatoriamente no asfalto. Chegaram em frente a um casebre pequeno e claro, que se destacava dos demais por ter em frente nada mais que uma roseira de uns cinco pés de altura, de onde pendiam pequenos botões de um rosa intenso e vivo. Aquela cor lembrava os lábios de Andreas.

Ao entrar na casa se deparou com paredes cobertas por fotos dela e do noivo em preto e branco, coladas como reais papéis de parede, declarações de amor e frases da intimidade dela com o falecido noivo escritas com spray.

Sentiu sua boca abrir lentamente numa expressão clara de seu pavor.

— Que tipo de brincadeira idiota é essa? Onde você conseguiu essas fotos? De onde você conhecia o Andreas? — Disse quase gritando, tentando organizar as palavras antes de arremessá-las contra o homem.

— Não fiz nada disso aqui, quem fez foi o seu noivo. Se duvidar é só perguntar pra um dos amigos dele com quem consegui esse endereço e a chave. Vinicius o nome, se bem me lembro. Eu expliquei toda a situação e pedi pra que ele não te contasse, queria eu mesmo fazer isso. Ele me contou que o Andreas pretendia te dar esse presente peculiar quando fosse te pedir em casamento. Eu não cheguei a ter o prazer de conhecê-lo, propriamente dizendo. — Disse num tom uniforme e triste.

Depois de processar as informações e sem desviar os olhos da parede por vários minutos ainda maravilhada, Clara começou a formular o resto das perguntas. Ao reunir a coragem necessária e se virar para a soleira da porta de onde o homem não havia passado, se viu totalmente sozinha. Foi até a porta e olhou para a rua, nem sinal de viva alma. Depois de alguns minutos tentando recobrar o senso prático, viu um casal passando e percebeu que de fato ele tinha ido embora enquanto ela olhava as fotos. Voltou para dentro do lugar e olhou com mais calma, o chão de tábua corrida despertou uma vontade louca de ficar descalça. Tirou as sandálias e sentou no chão, olhando a casa que tinha um banheiro pequeno nos fundos ao lado de uma pia. Perto da porta do banheiro, viu uma caixa de papelão grande e foi até ela pensando ser parte da surpresa que Andreas havia preparado. Ao abrir se deparou com dezenas de rosas que enxiam a caixa até o topo e o envelope marfim já familiar que se destacava por cima delas.


"Agora que consegui um sorriso teu, toma as flores do seu noivo de volta. Elas foram outra forma de testar você e a sua persistência, e adivinha? Constatei o que já sabia, que você é especial. Por isso quis te trazer de forma também especial até esse lugar. Depois de esmagar o crânio do seu noivo com minha lancha em Angra, não consegui mais viver normalmente. Mesmo eximido de culpa pela justiça, lembro-me bem de ter estado levemente embriagado e de não ter sido prudente ao pilotar a embarcação. Tirei a vida de duas pessoas. A dele e a sua que embora seja triste admitir, foi em parte junto com ele. Fiquei obcecado ao constatar isso e fascinado com você. Por isso fiquei durante esses dois anos te seguindo de perto e observando o seu sofrimento. Assisti do quão perto foi possível o sofrimento dos pais e amigos da minha vítima também, mas todos depois de um tempo deram um jeito de sumir com a dor e retomar suas vidas. Todos, menos você. Você continua vivendo como uma guerreira, mas eu mais que qualquer outra pessoa vejo a dor dentro de você. A sua alma sangra até hoje e minhas mãos estão lavadas com esse sangue. O que eu fiz vai me machucar até meu último minuto, mas o seu perdão é de suma importância pra que eu consiga continuar com minha miserável existência apesar dessa dor. Espero que não me odeie mais por ter me aproximado de ti e que possa me perdoar ainda assim.
Mil desculpas, mais uma vez.
Y.M."


Em anexo, a mesma matéria que ela tinha guardado na caixa, ocupante de metade da segunda página do jornal "Sul Fluminense" do dia 20 de janeiro de 2007. Em letras borradas pelo tempo, um jornalista ao qual se lembra de ter dado entrevista, comunicava com pesar que havia falecido em uma praia de Angra dos Reis, o jovem Andreas Boechat de 22 anos, atingido por uma lancha pilotada pelo universitário Yvens Mascarenhas, 24. Mais em baixo, a foto do homem que protagonizou seus pesadelos por meses à fio, até que ela resolveu bloquear essa lembrança. As feições eram as mesmas, não estava nem um dia mais jovem do que naquela manhã na confeitaria.

Um turbilhão de emoções tomou conta de cada fibra do corpo de Clara. Não sentiu raiva depois de ler aquelas palavras, mas não entendeu como conseguiu não reconhecer naquele indivíduo o homem que pilotava a lancha que atingiu Andreas naquela viagem fatídica.

Pegou a chave ainda pendurada no lado de fora da porta e trancou-a, fechando em seguida as duas únicas janelas do recinto. Acendeu a luz fraca mas suficiente e permaneceu com o rosto banhado por lágrimas dois anos atrasadas. Olhou cada uma das fotos minunciosamente, sem pressa nem muita noção do que fazia. Leu as brincadeiras, riu por alguns instantes e não parou de sorrir e chorar copiosamente. Deitou no chão frio e espalhou as rosas da caixa ao seu redor sem entusiasmo nem motivo para fazê-lo. Quando caiu em si, pegou o celular dentro da bolsa e viu que já eram mais de dez da noite.

Com os olhos inchados e um sono que só arrebata quem chora por tantas horas seguidas, sentiu seus olhos se fechando lentamente, ainda olhando cada centímetro das paredes em volta. Não sonhou durante aquela noite desconfortável no chão do lugar mais incrível em que já estivera. Acordou com o barulho do Bonde percorrendo os trilhos ao fundo, lembrou naquele instante que não estava em casa e que nem era para estar. Tinha aula de Tributário II nas manhãs de segunda e pelo horário que o Bonde começava a circular, certamente já estava demasiado atrasada.

Puxou a bolsa pela alça, onde colocou o cartão e depois de sair com os olhos incomodados à luz do dia, fechou a porta da casinha e levou a chave. Esperou vinte minutos até que o Bonde chegou à estação apinhado de turistas maravilhados e alguns artistas carregando material de pintura, desenho ou algo do tipo. Com o Bonde vazio, subiu com dificuldade e a nítida impressão de estar tendo seus olhos agredidos pelo amarelo forte do veículo. O balanço da descida embrulhou o estômago de Clara e a fez lembrar que há muito não comia. Ao descer no Largo da Carioca sem se dar conta de já ter passado pelos Arcos da Lapa, foi até uma padaria de aparência limpa na Avenida Chile, onde comeu um saco de suspiros e tomou um suco de abacaxi com hortelã.

Um ônibus que passava obrigatoriamente pela zona sul estacionou em seu ponto final do outro lado da Avenida, Clara se apressou a pagar a conta e atravessou rapidamente fora do sinal olhando para um só lado. Entrou no ônibus e se acomodou em um dos últimos bancos. A volta para seu apartamento além da viagem barulhenta de ônibus teve também uma caminhada exaustiva da Ladeira dos Tabajaras até a rua de casa. Chegando no prédio foi recebida por um sorriso perdido no rosto espantado do porteiro, deixando claro que sua aparência não era das melhores. Respondeu ao sorriso com um breve aceno e quase correu para o elevador que a levou ao quinto andar lentamente.

Introduziu a chave bruscamente no buraco da fechadura sem olhá-lo. Dentro de casa, despiu-se com o descuidado de deixar o vestido jogado em cima da poltrona, um pé das sandálias perto da janela e o outro embaixo da mesa de centro. Sentou-se no chão e pegou no porta-trecos um bloquinho de capa verde e uma caneta de ponta fina. Minutos de reflexão se passaram até que suas mãos começaram a rascunhar uma resposta ao bilhete que encontrara junto às rosas no casebre. Sem a intenção de causar nenhuma impressão, escreveu as palavras de modo a ocupar o pequeno papel por inteiro.

Sentindo a pele melada e coberta de suor, foi até o banheiro onde ligou o chuveiro e sentou-se no chão embaixo da água corrente. Ficou lá até seus dedos ficarem enrugados como gostava de fazer quando era criança. Saiu do banho e se arrumou para sair de novo. Vestiu o mesmo jeans Colcci acompanhado de uma blusa roxa. Calçou suas havaianas brancas e decidiu deixar o cabelo secar e se arrumar naturalmente. Pegou um envelope laranja na gaveta da estante e lá depositou o bilhete que escrevera há pouco. Saiu novamente carregando nos dois bolsos as chaves, o envelope e a carteira.

Já em frente ao prédio, traçou a rota mental para que passasse pela Nossa Senhora de Copacabana, onde sempre comprava flores na mesma banca. Quinze minutos andando, virou na esquina onde ficava uma senhora corcunda e de bochechas caídas vendendo todos os tipos de flores.

— Bom dia, minha menina. Uma dúzia de rosas brancas? — Perguntou a velhinha sorrindo enquanto juntava folhas de papel de embrulho.

— Não, não. Hoje vou levar duas dúzias de todas as cores. — Disse passeando com as mãos pelos baldes de lírios amarelos. Esperou enquanto a senhora sem nenhuma pressa juntava as flores e depois as embrulhava caprichosamente.

— Quer uma sacola?

— Ah, por favor... — Falou rapidamente enquanto abria a carteira. Tirou uma nota de R$ 50,00 e entregou nas mãos cálidas da velhinha.
— A senhora pode ficar com o troco, até semana que vem. — Disse pegando a sacola do caixote de madeira a seu lado e sorrindo.

— Brigada, menina. Vai com Deus, até.

Andou mais duas quadras e fez sinal para um táxi desocupado. O táxi dirigido por uma mulher de meia idade parou e a motorista ostentou um sorriso de dentes amarelados.

— Pra onde, moça?

— Pro cemitério São João Batista. Dá pra ser?

— Claro, pode entrar.

Entrou no carro que cheirava a cigarros e livros velhos. A taxista fez um ou dois comentários sobre o tráfego tumultuado e sobre uma possível mudança no tempo e a conversa não foi muito além disso. Parando na porta do cemitério, a mulher informou o valor da corrida e recebeu o dinheiro com um suspiro cansado. Clara desceu do táxi com a sacola em uma das mãos e com a mão desocupada pegou o envelope dentro do bolso, abrindo-o ao passar pela entrada principal. Desdobrou o papel pequeno totalmente ocupado por sua caligrafia não muito bonita, mas legível. Leu as palavras que escrevera com a cabeça baixa e a respiração ofegante.


"Apesar da surpresa, não tenho muito o que dizer. Você me era familiar, alguma coisa dentro de mim me disse mas eu não te reconheci por ter tirado de mim toda e qualquer informação sobre quem matou o meu Andreas, assim como o ódio que senti dessa mesma pessoa na época. Além do meu perdão, deixo aqui duas dúzias de rosas. Uma pro amor da minha vida, outra pra quem tirou a vida do meu amor (pra caso ele ainda nutra o hábito de larapiar flores de quem não pode contestar o furto). O meu perdão você tem, só desejo agora que você consiga perdoar a si mesmo.
Com carinho, C.L."



Releu algumas vezes, observando o contraste que fazia a tinta preta e molhada no papel branco e seco. Depois de dobrar e colocar novamente a mensagem no envelope, levantou a cabeça devagar e deu alguns passos mais, encostando com os joelhos na borda de mármore do túmulo de seu amado e sentindo o cheiro habitual do sândalo. Tirou da sacola uma das dúzias de rosas e depositou no vaso já seco que deixara lá da última vez. Torceu como sempre, para que a chuva se encarregasse de alimentar a única coisa que ela podia oferecer a quem mais amou na vida. Colocou o vaso no canto direito da pedra e tirou da sacola a outra dúzia de rosas. Depositouu o envelope em meio às rosas e deixou-as em cima da pedra lisa e empoeirada.

Olhou mais uma vez para as duas dúzias de rosas e caminhou para a saída. Percorreu os metros que a separavam do portão escancarado, com as pernas vacilantes e sentindo as mãos frias demais. Conseguiu pegar o primeiro táxi para o qual fez sinal, falando baixo o seu destino e recostando a cabeça no banco. Se perguntou se o homem teria a sensibilidade de voltar ao cemitério e se leria o que escreveu para ele. Torceu agora para que a chuva esperasse até que ele pudesse ler o que ela deixara junto com as rosas.

No sábado seguinte, menos de uma semana depois de ter ido ao cemitério pela última vez, resolveu que era hora de voltar ao lugar. Depois de tomar café na Colombo, pegou um táxi e foi até a necrópole que permanecia da mesma maneira de sempre. A mesma que ela visitava todos os sábados há dois anos.

Fazendo seu caminho entre os túmulos e, relembrando os velhos hábitos que por sinal não morreram, riu e teve a certeza de que Andreas ria dela e junto com ela naqueles breves instantes.

Ao sentir o cheiro de sândalo que agora a agradava, olhou para o túmulo e viu apenas a dúzia de rosas que destinou a Andreas. Sorriu apertando os lábios.

— É... Conseguiu o sorriso que queria e mais uma dúzia de rosas só pra ele. — Se dirigiu à saída do cemitério, onde continua indo semanalmente antes de ir passar o fim de semana em algum lugar de Santa Tereza.