quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Lugar Certo, Hora Incerta

© 2009, by Gustavo Pierobom

Havia acabado de brigar com a esposa. Velhos assuntos, outrora já esquecidos, vieram à tona, trazendo consigo uma não tão comum discussão conjugal.

Naquele início de noite de sábado, nem mesmo uma boa leitura, que fora muitas vezes, seu refúgio àquelas situações, bastou para ocupar sua mente, distraindo-o dos problemas caseiros.

Lembrou-se do seu velho pai, que sempre tivera as melhores soluções para coisas assim. Parecia que ouvia seu velho dizendo: “Quando a mulher insiste em brigar, dê uma saída para arejar as idéias. Beba alguma coisa, fique só, por um momento. Mas não exagere no horário, nunca esqueça: se você a ama, ela sempre está com a razão.”

Resolveu seguir o conselho que o pai acabara de lhe dar em pensamento. Pegou as chaves do carro e vestiu um casaco qualquer. Foi até o quarto, onde a esposa, deitada na cama sob dois cobertores, choramingava, para avisá-la de sua saída.

— Amor, vou sair um pouco. Não tarda estarei de volta.

Após receber o silêncio como resposta, subiu no carro e saiu dirigindo pela cidade. Dirigir à noite era, depois de uma boa leitura, sua terapia preferida. Optou por ruas secundárias, menos movimentadas. Queria sossego. Passou por lugares onde nunca havia passado no período de um ano que morava naquela cidade. Lembrou-se dos amigos e de como era bom ter com quem conversar. Após ter aceitado aquela proposta de emprego, se mudara com a esposa para aquela longínqua cidade. Desde então estava carente de amizade. Sentiu saudade do seu amigo Luis, o qual chamava de irmão, e das longas noites jogando conversa fora, relembrando os tempos de infância, onde jogavam bola, descalços, na rua de chão batido. Refletiu se havia tomado a decisão certa, se ter se casado na casa dos vinte, trocando sua liberdade jovial pela vida conjugal fora a melhor coisa que fez. Sim. Havia decidido corretamente. Apesar de às vezes a saudade das farras com os amigos lhe corroer por dentro, amava Elena mais do que tudo, talvez mais que a própria vida. Não se arrependia de nada.

O ronco do seu estomago o lembrou que ainda não comera nada naquele dia. Depois de vagar mais um pouco, passou em frente a um quiosque de lanches, onde uma única mesa, acompanhada de uma cadeira e do silêncio, estava muito convidativa.

Estacionou o carro e dirigiu-se ao local. Um simpático senhor de cabelos brancos, assistia uma minúscula televisão preto e branco. Sentou-se à mesa e, ignorando a lei seca, pediu uma cerveja. O senhor trouxe a cerveja acompanhada de um humilde cardápio.

— Noite difícil, heim? — perguntou o senhor com um tom de voz de filósofo que pareceu se encaixar perfeitamente àquela ocasião.

— É. Mas como o senhor sabe? Minha cara está tão ruim assim?

— Não filho, não está das piores. Acontece que eu tenho um grupo muito especial de clientes.

— É mesmo? — perguntou curioso a respeito do que de especial ele próprio poderia ter.

— Sim. As pessoas só vêm aqui quando precisam ficar sós. Esquecer os problemas... Arejar a cabeça. — e piscou o olho. — Sabe?

— Sei. — respondeu achando curioso a coincidência das ultimas palavras do senhor e as do seu pai.

Correu rapidamente o olho pelo cardápio e pediu um cachorro quente.

— Mas o senhor não tem muito movimento por aqui. — comentou. — Não seria melhor instalar-se no centro, onde há mais movimento?

— E abrir mão de casos como o seu? — disse o velho, enquanto já preparava o lanche. — Aqui é muito mais interessante... Lembre-se: Os inteligentes lêem livros, os espertos apenas observam.

Ele achou estranho o tom de voz debochado que o velho utilizara para proferir as últimas palavras, mas não, não. Era apenas coincidência.

— Filho, — escutou o senhor falar, enquanto já sentia o saboroso aroma da futura refeição. — você está no lugar certo, mas a hora é incerta, e quando a hora é incerta, coisas podem acontecer. Coisas que podem mudar uma vida... Vou fazer seu lanche para a viajem, talvez dois. Quem sabe? — e piscou o olho. — E você vai para casa resolver as coisas. Que tal?

Pensou então que aquele senhor era malandro demais, e que dizia aquilo somente para poder vender mais um lanche.

— Não, obrigado, vou comer aqui mesmo. E traga outra cerveja.

— Bem, depois não diga que eu não avisei.

O senhor então tornou-se mudo. O homem, enquanto apreciava sua segunda cerveja, puxou da memória, tentando lembrar-se se existia naquela cidade alguma floricultura aberta vinte e quatro horas. O tradicional buquê de rosas era, desde sempre, o infalível reconciliador de relações amorosas.

Cinco minutos depois o cachorro quente estava servido. Tinha boa aparência e um cheiro agradável. Parecia que aquele senhor, além de ser muito malandro, sabia preparar um lanche como ninguém.

Quando abriu a boca para dar a primeira mordida, escutou o barulho de um carro vindo em alta velocidade. Achou estranho, pois desde que chegara ali, não havia visto passar e tampouco ouvir nenhum automóvel. O barulho foi tornando-se mais intenso, aproximando-se rapidamente, até que então sua silhueta surgiu na ponta da rua, vindo, pelas suas contas, a no mínimo 120km/h. Foi questão de segundos para o carro estar a poucos metros dele e, sem ao menos brecar, colidir com um poste do outro lado da rua, exatamente em frente ao quiosque de lanches.

— Deus do céu! — exclamou, deixando seu cachorro quente cair, ainda intacto, no chão, e correr em direção ao veículo para socorrer as possíveis vítimas.

O capô do carro estava completamente destruído e tinha se reduzido a um terço do seu tamanho original. A água fervente do radiador jorrava para o alto, assemelhando-se com um vulcão em erupção.

Abriu a porta do motorista e encontrou sua única ocupante. Uma mulher jovem, talvez da mesma idade da esposa, encontrava-se desacordada com um profundo corte na testa. Desprendeu-a do cinto de segurança e tomou-a nos braços.

— Chame uma ambulância! — gritou para o senhor do quiosque.

— Não tenho telefone. — explicou o senhor, sem demonstrar o menor sinal de preocupação. — Eu o avisei. — complementou, gesticulando com as mãos e com um debochado sorriso no rosto.

O homem percebeu que teria de resolver aquilo sozinho. Ainda com a mulher nos braços, apalpou os bolsos em busca do celular, mas depois de uma breve verificada, notou ter deixado o aparelho em casa. Olhou ao redor. Nenhum telefone público. “Merda!” Pôs a mulher deitada no banco traseiro de seu carro e saiu dirigindo rapidamente para o pronto socorro municipal, que não ficava muito longe dali. Em poucos minutos ele estava entregando a mulher aos médicos de plantão e explicando o ocorrido.

Sentiu-se na obrigação de aguardar um pouco até que soubesse alguma notícia a respeito do estado clínico da mulher. Não soube dizer ao atendente que fazia os cadastros, os dados pessoais da paciente, mas, como o protocolo exigia, forneceu seus próprios para possíveis verificações posteriores.

Então sentou-se numas das poucas cadeiras vagas na ala de espera do hospital, mas, vencido pelo cansaço, adormeceu. Quando acordou-se percebeu que já passava das três da madrugada. “Elena vai me matar.”

— A mulher que eu trouxe, como ela está? — perguntou a outro atendente, pois o de antes já não estava.

— Ah, era o senhor? Desculpe, mas ela foi embora há mais de uma hora. Não foi nada grave com ela. Eu não soube dizer a ela quem a havia socorrido. Me desculpe, mas ela pediu seu telefone, achei que não haveria problema em fornecê-lo, sabe, ela era muito bonita, apesar do grande curativo na testa.

— Obrigado!

Saiu correndo dali em direção ao carro. “Elena vai me matar.” Deu a partida e saiu dirigindo a toda velocidade para casa. Consultou novamente o relógio. 03h45min. “Elena vai me matar.”

Quando entrou em casa a esposa já estava com a mala pronta.

— Onde você estava até essa hora?!

Ele começou explicando que tinha ido fazer um lanche, mas a esposa o interrompeu:

— E esta mensagem no seu celular?! — furiosa, com o aparelho em mãos.

Depois de caçar no ar o objeto que a esposa acabar de lançar com força exagerada, leu a mensagem.

“Muito obrigada por esta noite. Foi maravilhoso uma pessoa como você estar no lugar certo. Me ligue assim que poder, tenho que lhe agradecer por hoje.

Beijos, Gabrielli.”

“Ai, agora fodeu!”

— E então, quem é essa vadia?!

Ele aproximou-se da sua amada tentando acalmá-la e explicar o ocorrido, mas quando chegou perto, as coisas pioraram. Ela apontou furiosa, para o seu pescoço.

— E essa marca de batom no seu colarinho?! Você não tem sentimentos?! Depois de tudo que vivemos juntos?!

Percebeu que na hora em que tomou a mulher nos braços para socorrê-la, possivelmente seus lábios pudessem ter tocado a gola de sua camisa branca. “Agora fodeu de vez!” A mulher berrou um seco “Adeus” e, carregando sua mala, saiu porta fora em plena madrugada.

Vencido e abismado pelas diversas peças que o destino lhe pregara naquela noite, resolveu não ir atrás da esposa. Definitivamente aquela não era uma boa noite para resolver problemas afetivos. Amanhã, possível, porém muito improvavelmente conseguiria convencer a esposa a acreditar na sua incrível aventura noturna. Agora ele só conseguia refletir sobre a teoria daquele senhor do quiosque de lanches: o lugar pode até ser o certo, mas se a hora é incerta... Estamos perdidos!

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