terça-feira, 28 de abril de 2009

Duas Dúzias de Rosas


Copyright © 2009 - Todos os direitos reservados a: Thábata Thomé de Deus


Ninguém gosta de ter que levantar para atender o interfone no meio de uma manhã de sábado, mas é uma coisa que tem que ser feita quando se mora sozinha em um prédio onde o porteiro não mede esforços para fazer com que os moradores atendam a seus chamados.

— Bom dia, dona Clara. Chegou o cartão aqui pra senhora, aquele mesmo menino veio trazer — Disse o porteiro ancião de voz rouca e fala acelerada.

— Ótimo, ele ainda tá aí, certo?

— Não, senhora. Eu tentei segurar ele conforme a senhora me pediu. Mas o moleque parece que adivinhou e não entrou dessa vez pra entregar, enfiou por debaixo do portão da frente e saiu correndo. Quando fui até lá ele já tava virando a esquina. Desc...

— Tudo bem, sr. Alcides. Amanhã eu mesma devo ficar esperando por ele aí na portaria, obrigada de qualquer jeito. Tem como colocar no elevador pra mim?

— É pra já, tá subindo.

Encaixou o interfone na parede e foi se arrastando até a mesa do telefone onde pegou a chave do apartamento e abriu a porta pesada ao seu lado, revelando um corredor escuro e pequenino, que se iluminou com a luz fraca típica de um dia nublado saída de seu apartamento. O elevador antigo e de movimento quase pesaroso, parou no quinto e último pavimento totalmente vazio, exceto por um envelope de cor marfim colocado pelo porteiro no canto abaixo do painel com os números dos andares. Sem lacre nem nada que o fechasse, o envelope de tamanho médio apresentava nada além do destinatário escrito em caligrafia firme e impecável, tornando impossível dizer se pertencia à uma mulher ou a um homem. O conteúdo era curto e direto, escritas com a mesma caligrafia do envelope, as palavras do cartão rosa claro ainda lhe davam arrepios:

"Quando você vai sorrir pra mim?"

Sentou na poltrona velha que tinha trazido da casa dos pais, respirou fundo e exalou o cheiro das brincadeiras dela com o irmão, cheiro da sua infância, cheiro de alguma coisa que se perdeu sem que ela se desse conta. Depois de não mais do que dois minutos, levou as mãos à cabeça e prendeu os cabelos escuros que iam até os ombros num coque desajeitado.
Releu os dizeres, mesmo tendo decorado cada uma daquelas palavras desde o primeiro cartão. Sentiu-se uma desvairada por isso, mas por vezes se viu com vontade de ouvir a voz por trás daquelas palavras, perguntou-se se viria a escutar aquela pergunta inquietante que lia diariamente há semanas. Pegou o cartão e colocou-o junto aos outros tantos dentro de um porta-trecos rosa que enfeitava sozinho a mesa de centro.

— Hoje é dia de café-da-manhã de verdade — Falou consigo mesma, hábito adquirido desde que fora morar sozinha e que provavelmente não mais seria capaz de abandonar. Assim como o de tomar café na mais tradicional confeitaria da cidade todos os sábados sob quaisquer circunstâncias.

Foi até o banheiro, lavou o rosto e contemplou a face limpa e bronzeada no espelho. Gostava de quando os dias de praia lhe permitiam ganhar um aspecto mais saudável e mais carioca do que a sua palidez original. No quarto, garimpou um jeans Colcci velho e surrado e uma regata branca, vestiu ambas as peças rapidamente e foi procurar o primeiro par de havaianas que avistasse. Depois de prender o cabelo num rabo de cavalo, pegou a carteira e saiu deixando para trás o apartamento bagunçado e invadido pelo ar fresco da manhã.

Passou pela portaria dando apenas um aceno ao porteiro, correspondido com um sorriso brincalhão. Depois de pegar um ônibus não muito cheio, se viu no centro da cidade. Foi andando devagar, sentindo seus pés pesarem mais que o normal. O trajeto do ponto onde saltou até confeitaria Colombo era relativamente curto mas demorou o suficiente para seu estômago roncar mais de três vezes.

Escolheu uma mesa no salão do primeiro andar, perto de uma das janelas. Sentou e se deliciou com os aromas de seus doces preferidos todos misturados. Fez um pedido proporcional à sua fome e devorou sem se preocupar com as regras de etiqueta quatro Torradas Petrópolis, uma porção de Rivadávia e meia porção de Petit-Fours.

Feito o seu café da manhã, pediu a conta. Sentiu no instante em que o garçom se afastou para buscar a conta que estava sendo observada, percorreu o salão com os olhos e se deparou com um sujeito alto, esguio e de feições claras e aristocráticas sentado no extremo oposto do lugar. Vestia uma calça jeans escura, sapatos sociais impecavelmente engraxados e uma blusa de linho branca com riscas de giz. Comia calmamente pequenos torrões de açúcar acompanhados de um Latte Macchiato, com os olhos ainda pousados sobre Clara. Sem nenhum constrangimento aparente, o homem sustentou sem esforço o olhar mais hostil que a moça conseguira produzir.

— Senhora, a sua conta. — Disse o garçom em tom formal, mas que soou aos ouvidos de Clara como um berro assustador.

— Ah, sim. Vou pagar no cartão, pode incluir os dez por cento — E retirou da carteira que estava em cima da mesa, um cartão prateado que entregou ao garçom — Débito, por favor.

Depois de digitar a senha e se despedir do garçom, levantou-se ruidosamente e parou alguns instantes para olhar para o homem que ainda não havia deixado de encará-la. Não sabia se era uma impressão estranha típica de um dia igualmente estranho como aquele, mas parecia que o tal sujeito não piscara nenhuma vez até então, e assim continuava. Quando não mais foi capaz de olhar para o homem mantendo sua expressão neutra, decidiu dar de costas e encarar seu compromisso das manhãs de sábado. Olhou para trás uma vez mais certificando-se de não estar sendo seguida por aquele que podia ser um louco, um maníaco ou uma ameça semelhante apesar de aparentar exatamente o contrário. Através do vidro pelo lado de fora da confeitaria, contemplou o homem que ainda sentado continuava a seguir seus passos com o olhar, mas dessa vez sorrindo lindamente, como há tempos ela não via ninguém sorrir-lhe. Sentiu vontade de voltar e se aproximar daquele sorriso. Tocá-lo talvez, só para sentir a textura ou ouvir o som que ele tinha. Mas continuou a andar e desviar de alguns transeuntes, tentando tirar do pensamento aquele sorriso convidativo.

Ficou parada durante alguns minutos na Avenida Rio Branco, procurando por um dos "amarelinhos". Um deles chegou e o motorista baixinho e de pele muito rosada quase soltou um grunhido de alegria quando pediu-lhe que a levasse até o São João Batista.

— Sábado de manhã não é hora de visitar gente morta, moça. Não prefere ir pra praia? Esse mormaço às vezes queima mais que o próprio sol... E Copacabana hoje tá liberada pro banho. — Disse o motorista com voz cansada e gentil.

— Não, brigada. Na verdade nem é exatamente uma visita, vou só conferir se as flores que eu coloquei pro meu noivo no último sábado ainda estão lá. Algum delinquente desalmado anda tirando toda semana, cada uma das rosas que eu coloco. — Disse a ninguém em especial, cruzando os braços e aproximando o rosto da janela por onde um vento cortante entrava.

— Pois é, hoje ninguém mais respeita a memória dos falecidos não. Imagine você que, roubaram até uma escultura de gesso que mandei fazer pra enfeitar a lápide de minha falecida Mirtes. Um absurdo...

— Sim, um absurdo mesmo. — Um silêncio instaurou-se e cada um dos ocupantes do carro ficou imerso em seus próprios pensamentos e lamentações. Durante o resto do caminho, o motorista pigarreou algumas vezes mas não esboçou vontade de travar outra vez um diálogo, falta de vontade compartilhada por Clara.

Virando a esquina na rua General Polidoro, avistou o portão tantas vezes visto por ela num curto espaço de dois anos. A visão da grade que cercava a famosa necrópole resultava, como sempre, numa série de "beliscões internos", como se algo pinçasse a pele de seu tronco e de seus braços de dentro para fora. O táxi parou alguns metros antes da entrada em forma de arco, de onde duas senhoras saíam e um adolescente entrava.

— Deu R$ 38,00, dona. — O taxista encostou os dedos redondos no taxímetro e virou para trás esperando pelo dinheiro.

— Toma, moço. Brigada, tenha um bom dia. — Estendeu uma nota de R$ 50,00 um tanto amassada e esperou pelo troco.

— Pra senhora também, moça.

Desceu do carro e enfiou sem nenhum cuidado o troco no bolso da calça, respirou fundo e sentiu seu cérebro congelar quando o cheiro peculiar daquele lugar invadiu suas narinas. Percebeu que chegava a hora de se aproximar da entrada e seguir o ritual quase técnico que adotava para conseguir atravessar boa parte do cemitério sem se contorcer com calafrios. O cemitério São João Batista em si, seria um lugar agradável se não fosse pelo fato de ser o que é, ou seja, a moradia de milhares de decujus. Detentor de uma arquitetura magnífica e obras de arte espalhadas por cada canto (desde as mais humildes lápides até o Mausoléu da Academia Brasileira de Letras). De fato, o lugar abrigava túmulos de figuras eminentes da História e isso era o que distraía Clara durante o percurso.

Os primeiros corredores do cemitério lembravam impiedosamente de como o pai de Andreas fez um comentário frio e infeliz no dia do enterro do filho, em meio às lágrimas da esposa, quando os três por ali passavam: "— Ainda bem que conseguimos colocar ele aqui, mulher! É o Père Lachaise carioca: estão enterrados aqui, entre outros, José de Alencar, Benjamim Constant, Floriano Peixoto, Oswaldo Aranha, Machado de Assis, Ari Barroso, Nelson Rodrigues, Miguel Couto, Luis Carlos Prestes, Carmem Miranda, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Cazuza, Clara Nunes, Chacrinha, Santos Dumont..." Citando até ficar sem fôlego uma por uma, todas as personalidades que lhe ocorreram e que debaixo de seus pés agora jaziam.

Ao longo de dois anos de passeios pelo lugar, alguns ítens foram incluídos em seu catálogo de manias.

— Sou senhora do meu e fui criada pra uma boa sorte — Falou em voz quase inaudível, olhando com satisfação para o Jazigo do ator Cláudio de Souza que retratava as três Moiras, divindades mitológicas que determinavam o destino.

Alguns anjinhos lindos e nus depois, parou diante da parte traseira de um túmulo qualquer e estendeu as duas mãos formando uma espécie de moldura. — Isso daria uma foto linda. — Enquadrando em seus dedos de unhas roídas, a imagem de algumas esculturas maltratadas pelo tempo com o Corcovado ao fundo.

Virando à direita, passou os olhos pelo túmulo de Nelson Rodrigues que nem parecia estar em um cemitério. A estátua do escritor brilhava e tinha um tom de ouro velho. Sempre que por lá passava, colocava a mão sobre a máquina de escrever do saudoso velhinho.

— Ainda escrevendo né, sr. Nelson? Assim o senhor vai é morrer de velho! — Riu e se sentiu bizarra por ainda não ter cansado dessas brincadeiras solitárias com os finados ilustres. Tudo bem que era uma forma de tornar menos sombria a passagem no meio do descanso eterno alheio, mas ainda assim era macabro fazer as mesmas piadinhas todas as vezes.

Continuou andando pelo mesmo corredor, avistou alguns metros adiante o lugar de seu amado. Era curioso como sentia um cheiro forte de sândalo toda vez que se aproximava de lá. Criou inúmeras hipóteses acerca da origem daquele cheiro, como viúvas das lápides vizinhas que gostavam de perfumar o ambiente, algum truque de sua mente não muito equilibrada, etc.

Seguiu pensando no cheiro até chegar em frente a ele, em pedra cor de grafite com uma foto envelhecida, lá estava o lugar onde dois anos mais cedo ela se despediu de Andreas e do futuro que tinham construído e que esperavam para viver. Constatou que como o esperado, as rosas não estavam lá. O jarro estava vazio e ainda molhado, a água havia sido jogada fora recentemente com a retirada das flores. Sentiu seu rosto ferver e se contorcer numa careta de raiva e cansaço. Deu meia volta e fez o caminho inverso, ignorando todas as coisas que gostava de admirar e para as quais sempre dava seu sorriso amargo.

Pegou um táxi em frente à necrópole que parecia expulsá-la de lá naquele dia, e pediu a um motorista de tipo físico comum, feições comuns e diálogo também comum que a levasse para a Barata Ribeiro. A viagem de volta para casa foi mais como um borrão confuso, não parou para reparar muito em nada. Só se deu conta de que se aproximava de casa quando virou na esquina da Pompeu Loureiro com a Barão de Ipanema. Desceu do táxi depois de pagar a corrida e deixar o troco para o motorista que convenientemente não era muito de conversa.

Ao adentrar a portaria, se deparou com o porteiro discutindo com uma das moradoras mais mal quistas que o prédio tinha. Não conseguiu captar o enredo da discussão, mas com toda certeza envolvia o cachorro ao qual ela chamava de "mi hijo" com um sotaque forçadamente espanhol. Deu um boa noite ignorado pelo calor da discussão e entrou no elevador torcendo para que esse chegasse o mais rápido possível.

Na porta do apartamento, pegou as chaves no bolso esquerdo da calça e entrou. Olhou para a janela diretamente e percebeu o que não tinha visto esse tempo todo em que estivera na rua: O sol começava a brilhar timidamente. Deu de ombros e foi até o quarto onde tirou a calça jeans e jogou-a em cima de uma pilha de livros de astrologia. Abriu o armário e tateou a parte de cima que não alcançava nem na ponta dos pés, até achar a caixinha de madeira que queria. Pegou sem olhar direito e levou para a sala, onde sentou e depositou o objeto nas coxas nuas. Abriu, sentiu vontade de espirrar mas não o fez. Remexeu com cuidado fotos, bilhetes, papéis de bombons e um recorte de jornal. O recorte era a única coisa sem cor dentro da caixa e esse fato a fez pensar que talvez fosse melhor deixar a notícia daquele dia, naquele dia. Não ia abrir depois de dois anos tomando o cuidado de não se auto-mutilar com aquelas imagens e aquelas palavras. Deixou no fundo da caixa o recorte e voltou a se divertir com as fotos. Todas deles dois sorrindo, mostrando as línguas coloridas, se beijando ou se abraçando. Reviveu cada um daqueles segundos, depois guardou de novo e colocou a caixa por cima dos discos de vinil na estante da sala.

De repente se sentia cansada como quem acumula semanas de esforço intenso e contínuo, sentiu seus músculos queimarem e se arrastou até a cama, onde caiu e adormeceu. Suada, de calcinha, blusa e cabelos semi-presos.

Acordou na manhã seguinte com o mesmo barulho incessante do interfone. Dessa vez não atendeu, não teve presença de espírito suficiente para aceitar as desculpas esfarrapadas do porteiro. Simplesmente pegou seu roupão lilás velho e soltando fiapos e sem calçar nada desceu até a portaria e pegou o cartão que o porteiro deixara na bancada central. Subiu novamente no elevador lento, sentindo como se seu corpo voltasse a dar sinais de normalidade, sem as dores da noite anterior e com uma sensação de leveza. Com o envelope de sempre na mão, entrou em casa e sentou calmamente na poltrona.

— Cara, isso tá começando a me irritar seriamente. Mas que droga de sorriso é esse e que tipo de desocupado perde tempo me mandando esse mesmo cartão tantas vezes? — Disse em voz alta, tentando se convencer de não mais buscar os cartões, deixá-los amontoados na portaria até que o tal remetente desistisse. Abriu o envelope e tirou o cartão, se assustando com a mudança no tamanho do conteúdo e em uma fração de segundo sentiu pontadas no estômago ao ver que as palavras de sempre foram substituídas por um local e um horário.


"Largo da Carioca - Estação do Bonde de Santa Tereza, 16 horas."


— Hummmmm, o Bonde tá sempre cheio. Seja quem for, não vai tentar nada por lá e eu preciso saber quem é e dar um fim nessa babaquice. — Disse ao mesmo tempo em que deixava o cartão em cima da mesa de centro e levantava.

Dois iogurtes depois, decidiu que daquela cozinha não sairia fumaça naquele dia. Seu organismo não ia mesmo aceitar comida diante da expectativa do encontro que teria naquela tarde. Uma olhada no relógio revelou que sete horas ainda se passariam até o horário arbitrariamente imposto pelo autor do cartão, então resolveu deitar para descansar até a hora de se preparar para o encontro.

Acordou pouco depois das duas da tarde com a sensação de que dormira demais. Levantou rápido e sentiu-se tonta por causa do movimento brusco do despertar. Procurou o celular do outro lado da cama de casal e verificou que já podia se arrumar caso quisesse ser pontual. Tomou um banho rápido e vestiu um vestido leve de algodão, que ela achava ser apropriado para as tardes de domingo. Saiu com os cabelos molhados ainda pingando nas costas e com uma bolsa pequena no ombro direito.

Pegou um ônibus que a levou mais rápido do que o esperado até o Largo da Carioca, de onde partia o Bonde. Entrando na estação, olhou instintivamente ao redor procurando por alguém que lhe fizesse um sinal ou algo do tipo. Em vão, sentou no banco de madeira na plataforma e ficou a observar o espaço vazio que em alguns minutos, como informava o painel na entrada, seria ocupado por um dos charmosos veículos que faziam o trajeto pelos Arcos da Lapa até o bairro de Santa Tereza.

Depois de não mais do que cinco minutos sentada no banco frio e duro, sentiu um forte cheiro de sândalo que demorou a reconhecer. Em seguida percebeu que pelo seu lado esquerdo crescia uma sombra e virou-se levantando a cabeça. Quem a olhava com olhos de pupilas líquidas e indecifráveis era o mesmo homem da confeitaria, mas agora sem o sorriso que chamou tanto a sua atenção.

— Ah, então era você esse tempo todo? — Disse sem alterar muito a voz, tentando permanecer calma.

— Se fala dos cartões, era eu esse tempo todo sim. — Falou o homem, revelando uma voz macia e suave.

— Tá. E você tá me seguindo, né? Há quanto tempo? Por que não falou comigo na confeitaria?

— Seguindo em termos, não invadi a sua privacidade nem nada. Só andei te observando.

— Me observando por que? Que você quer de mim? A gente nem se conhece, cara. Você chega falando como se fosse a coisa mais natural do mundo que me segue em termos, me observa. Dá pra explicar isso direito e acabar com essa situação logo? Eu tenho preguiça profunda de quem fica insinuando coisas, falando em meias palavras. E também não disponho de muito tempo pra joguinhos.

— Olha, eu tenho motivos pra fazer o que tô fazendo. E eles não estão em questão, pelo menos não por agora. Se você puder ser gentil e esperar alguns instantes, eu vou te mostrar o motivo de você estar aqui e de ter recebido todos aqueles cartões meus.

Ao engolir em seco todas aquelas palavras, ouviu o silêncio ser interrompido pelo barulho do Bonde que se aproximava. Entraram e sentaram um ao lado do outro, tomando o cuidado de não se encostarem. O passeio foi silencioso e tenso, os dois que estavam longe de parecerem um casal, permaneceram olhando em direções opostas durante todo o trajeto. Após percorrerem a terceira ladeira no bairro que dava nome ao Bonde (ou o contrário), o homem levantou e se dirigiu à saída. Quando o Bonde parou no ponto ele desceu seguido por ela.

Andaram por uma calçada irregular e com tufos de grama dispostos aleatoriamente no asfalto. Chegaram em frente a um casebre pequeno e claro, que se destacava dos demais por ter em frente nada mais que uma roseira de uns cinco pés de altura, de onde pendiam pequenos botões de um rosa intenso e vivo. Aquela cor lembrava os lábios de Andreas.

Ao entrar na casa se deparou com paredes cobertas por fotos dela e do noivo em preto e branco, coladas como reais papéis de parede, declarações de amor e frases da intimidade dela com o falecido noivo escritas com spray.

Sentiu sua boca abrir lentamente numa expressão clara de seu pavor.

— Que tipo de brincadeira idiota é essa? Onde você conseguiu essas fotos? De onde você conhecia o Andreas? — Disse quase gritando, tentando organizar as palavras antes de arremessá-las contra o homem.

— Não fiz nada disso aqui, quem fez foi o seu noivo. Se duvidar é só perguntar pra um dos amigos dele com quem consegui esse endereço e a chave. Vinicius o nome, se bem me lembro. Eu expliquei toda a situação e pedi pra que ele não te contasse, queria eu mesmo fazer isso. Ele me contou que o Andreas pretendia te dar esse presente peculiar quando fosse te pedir em casamento. Eu não cheguei a ter o prazer de conhecê-lo, propriamente dizendo. — Disse num tom uniforme e triste.

Depois de processar as informações e sem desviar os olhos da parede por vários minutos ainda maravilhada, Clara começou a formular o resto das perguntas. Ao reunir a coragem necessária e se virar para a soleira da porta de onde o homem não havia passado, se viu totalmente sozinha. Foi até a porta e olhou para a rua, nem sinal de viva alma. Depois de alguns minutos tentando recobrar o senso prático, viu um casal passando e percebeu que de fato ele tinha ido embora enquanto ela olhava as fotos. Voltou para dentro do lugar e olhou com mais calma, o chão de tábua corrida despertou uma vontade louca de ficar descalça. Tirou as sandálias e sentou no chão, olhando a casa que tinha um banheiro pequeno nos fundos ao lado de uma pia. Perto da porta do banheiro, viu uma caixa de papelão grande e foi até ela pensando ser parte da surpresa que Andreas havia preparado. Ao abrir se deparou com dezenas de rosas que enxiam a caixa até o topo e o envelope marfim já familiar que se destacava por cima delas.


"Agora que consegui um sorriso teu, toma as flores do seu noivo de volta. Elas foram outra forma de testar você e a sua persistência, e adivinha? Constatei o que já sabia, que você é especial. Por isso quis te trazer de forma também especial até esse lugar. Depois de esmagar o crânio do seu noivo com minha lancha em Angra, não consegui mais viver normalmente. Mesmo eximido de culpa pela justiça, lembro-me bem de ter estado levemente embriagado e de não ter sido prudente ao pilotar a embarcação. Tirei a vida de duas pessoas. A dele e a sua que embora seja triste admitir, foi em parte junto com ele. Fiquei obcecado ao constatar isso e fascinado com você. Por isso fiquei durante esses dois anos te seguindo de perto e observando o seu sofrimento. Assisti do quão perto foi possível o sofrimento dos pais e amigos da minha vítima também, mas todos depois de um tempo deram um jeito de sumir com a dor e retomar suas vidas. Todos, menos você. Você continua vivendo como uma guerreira, mas eu mais que qualquer outra pessoa vejo a dor dentro de você. A sua alma sangra até hoje e minhas mãos estão lavadas com esse sangue. O que eu fiz vai me machucar até meu último minuto, mas o seu perdão é de suma importância pra que eu consiga continuar com minha miserável existência apesar dessa dor. Espero que não me odeie mais por ter me aproximado de ti e que possa me perdoar ainda assim.
Mil desculpas, mais uma vez.
Y.M."


Em anexo, a mesma matéria que ela tinha guardado na caixa, ocupante de metade da segunda página do jornal "Sul Fluminense" do dia 20 de janeiro de 2007. Em letras borradas pelo tempo, um jornalista ao qual se lembra de ter dado entrevista, comunicava com pesar que havia falecido em uma praia de Angra dos Reis, o jovem Andreas Boechat de 22 anos, atingido por uma lancha pilotada pelo universitário Yvens Mascarenhas, 24. Mais em baixo, a foto do homem que protagonizou seus pesadelos por meses à fio, até que ela resolveu bloquear essa lembrança. As feições eram as mesmas, não estava nem um dia mais jovem do que naquela manhã na confeitaria.

Um turbilhão de emoções tomou conta de cada fibra do corpo de Clara. Não sentiu raiva depois de ler aquelas palavras, mas não entendeu como conseguiu não reconhecer naquele indivíduo o homem que pilotava a lancha que atingiu Andreas naquela viagem fatídica.

Pegou a chave ainda pendurada no lado de fora da porta e trancou-a, fechando em seguida as duas únicas janelas do recinto. Acendeu a luz fraca mas suficiente e permaneceu com o rosto banhado por lágrimas dois anos atrasadas. Olhou cada uma das fotos minunciosamente, sem pressa nem muita noção do que fazia. Leu as brincadeiras, riu por alguns instantes e não parou de sorrir e chorar copiosamente. Deitou no chão frio e espalhou as rosas da caixa ao seu redor sem entusiasmo nem motivo para fazê-lo. Quando caiu em si, pegou o celular dentro da bolsa e viu que já eram mais de dez da noite.

Com os olhos inchados e um sono que só arrebata quem chora por tantas horas seguidas, sentiu seus olhos se fechando lentamente, ainda olhando cada centímetro das paredes em volta. Não sonhou durante aquela noite desconfortável no chão do lugar mais incrível em que já estivera. Acordou com o barulho do Bonde percorrendo os trilhos ao fundo, lembrou naquele instante que não estava em casa e que nem era para estar. Tinha aula de Tributário II nas manhãs de segunda e pelo horário que o Bonde começava a circular, certamente já estava demasiado atrasada.

Puxou a bolsa pela alça, onde colocou o cartão e depois de sair com os olhos incomodados à luz do dia, fechou a porta da casinha e levou a chave. Esperou vinte minutos até que o Bonde chegou à estação apinhado de turistas maravilhados e alguns artistas carregando material de pintura, desenho ou algo do tipo. Com o Bonde vazio, subiu com dificuldade e a nítida impressão de estar tendo seus olhos agredidos pelo amarelo forte do veículo. O balanço da descida embrulhou o estômago de Clara e a fez lembrar que há muito não comia. Ao descer no Largo da Carioca sem se dar conta de já ter passado pelos Arcos da Lapa, foi até uma padaria de aparência limpa na Avenida Chile, onde comeu um saco de suspiros e tomou um suco de abacaxi com hortelã.

Um ônibus que passava obrigatoriamente pela zona sul estacionou em seu ponto final do outro lado da Avenida, Clara se apressou a pagar a conta e atravessou rapidamente fora do sinal olhando para um só lado. Entrou no ônibus e se acomodou em um dos últimos bancos. A volta para seu apartamento além da viagem barulhenta de ônibus teve também uma caminhada exaustiva da Ladeira dos Tabajaras até a rua de casa. Chegando no prédio foi recebida por um sorriso perdido no rosto espantado do porteiro, deixando claro que sua aparência não era das melhores. Respondeu ao sorriso com um breve aceno e quase correu para o elevador que a levou ao quinto andar lentamente.

Introduziu a chave bruscamente no buraco da fechadura sem olhá-lo. Dentro de casa, despiu-se com o descuidado de deixar o vestido jogado em cima da poltrona, um pé das sandálias perto da janela e o outro embaixo da mesa de centro. Sentou-se no chão e pegou no porta-trecos um bloquinho de capa verde e uma caneta de ponta fina. Minutos de reflexão se passaram até que suas mãos começaram a rascunhar uma resposta ao bilhete que encontrara junto às rosas no casebre. Sem a intenção de causar nenhuma impressão, escreveu as palavras de modo a ocupar o pequeno papel por inteiro.

Sentindo a pele melada e coberta de suor, foi até o banheiro onde ligou o chuveiro e sentou-se no chão embaixo da água corrente. Ficou lá até seus dedos ficarem enrugados como gostava de fazer quando era criança. Saiu do banho e se arrumou para sair de novo. Vestiu o mesmo jeans Colcci acompanhado de uma blusa roxa. Calçou suas havaianas brancas e decidiu deixar o cabelo secar e se arrumar naturalmente. Pegou um envelope laranja na gaveta da estante e lá depositou o bilhete que escrevera há pouco. Saiu novamente carregando nos dois bolsos as chaves, o envelope e a carteira.

Já em frente ao prédio, traçou a rota mental para que passasse pela Nossa Senhora de Copacabana, onde sempre comprava flores na mesma banca. Quinze minutos andando, virou na esquina onde ficava uma senhora corcunda e de bochechas caídas vendendo todos os tipos de flores.

— Bom dia, minha menina. Uma dúzia de rosas brancas? — Perguntou a velhinha sorrindo enquanto juntava folhas de papel de embrulho.

— Não, não. Hoje vou levar duas dúzias de todas as cores. — Disse passeando com as mãos pelos baldes de lírios amarelos. Esperou enquanto a senhora sem nenhuma pressa juntava as flores e depois as embrulhava caprichosamente.

— Quer uma sacola?

— Ah, por favor... — Falou rapidamente enquanto abria a carteira. Tirou uma nota de R$ 50,00 e entregou nas mãos cálidas da velhinha.
— A senhora pode ficar com o troco, até semana que vem. — Disse pegando a sacola do caixote de madeira a seu lado e sorrindo.

— Brigada, menina. Vai com Deus, até.

Andou mais duas quadras e fez sinal para um táxi desocupado. O táxi dirigido por uma mulher de meia idade parou e a motorista ostentou um sorriso de dentes amarelados.

— Pra onde, moça?

— Pro cemitério São João Batista. Dá pra ser?

— Claro, pode entrar.

Entrou no carro que cheirava a cigarros e livros velhos. A taxista fez um ou dois comentários sobre o tráfego tumultuado e sobre uma possível mudança no tempo e a conversa não foi muito além disso. Parando na porta do cemitério, a mulher informou o valor da corrida e recebeu o dinheiro com um suspiro cansado. Clara desceu do táxi com a sacola em uma das mãos e com a mão desocupada pegou o envelope dentro do bolso, abrindo-o ao passar pela entrada principal. Desdobrou o papel pequeno totalmente ocupado por sua caligrafia não muito bonita, mas legível. Leu as palavras que escrevera com a cabeça baixa e a respiração ofegante.


"Apesar da surpresa, não tenho muito o que dizer. Você me era familiar, alguma coisa dentro de mim me disse mas eu não te reconheci por ter tirado de mim toda e qualquer informação sobre quem matou o meu Andreas, assim como o ódio que senti dessa mesma pessoa na época. Além do meu perdão, deixo aqui duas dúzias de rosas. Uma pro amor da minha vida, outra pra quem tirou a vida do meu amor (pra caso ele ainda nutra o hábito de larapiar flores de quem não pode contestar o furto). O meu perdão você tem, só desejo agora que você consiga perdoar a si mesmo.
Com carinho, C.L."



Releu algumas vezes, observando o contraste que fazia a tinta preta e molhada no papel branco e seco. Depois de dobrar e colocar novamente a mensagem no envelope, levantou a cabeça devagar e deu alguns passos mais, encostando com os joelhos na borda de mármore do túmulo de seu amado e sentindo o cheiro habitual do sândalo. Tirou da sacola uma das dúzias de rosas e depositou no vaso já seco que deixara lá da última vez. Torceu como sempre, para que a chuva se encarregasse de alimentar a única coisa que ela podia oferecer a quem mais amou na vida. Colocou o vaso no canto direito da pedra e tirou da sacola a outra dúzia de rosas. Depositouu o envelope em meio às rosas e deixou-as em cima da pedra lisa e empoeirada.

Olhou mais uma vez para as duas dúzias de rosas e caminhou para a saída. Percorreu os metros que a separavam do portão escancarado, com as pernas vacilantes e sentindo as mãos frias demais. Conseguiu pegar o primeiro táxi para o qual fez sinal, falando baixo o seu destino e recostando a cabeça no banco. Se perguntou se o homem teria a sensibilidade de voltar ao cemitério e se leria o que escreveu para ele. Torceu agora para que a chuva esperasse até que ele pudesse ler o que ela deixara junto com as rosas.

No sábado seguinte, menos de uma semana depois de ter ido ao cemitério pela última vez, resolveu que era hora de voltar ao lugar. Depois de tomar café na Colombo, pegou um táxi e foi até a necrópole que permanecia da mesma maneira de sempre. A mesma que ela visitava todos os sábados há dois anos.

Fazendo seu caminho entre os túmulos e, relembrando os velhos hábitos que por sinal não morreram, riu e teve a certeza de que Andreas ria dela e junto com ela naqueles breves instantes.

Ao sentir o cheiro de sândalo que agora a agradava, olhou para o túmulo e viu apenas a dúzia de rosas que destinou a Andreas. Sorriu apertando os lábios.

— É... Conseguiu o sorriso que queria e mais uma dúzia de rosas só pra ele. — Se dirigiu à saída do cemitério, onde continua indo semanalmente antes de ir passar o fim de semana em algum lugar de Santa Tereza.

2 comentários:

  1. Bem... O que dizer?
    Narrativa perfeita.
    Descrição perfeita dos detalhes e ambientes.
    Diálogos dinâmicos.
    Personagens com identidade própria, o que percebe-se pela maneira diferente com que se expressam nos diálogos e em seus gestos.
    Um enredo muito interessante.
    Um leve, porém angustiante suspense. (se vc demorasse mais duas linhas para revelar quem era o cara que mandava os bilhetes, a partir do momento em que subiram no bonde eu iria sofrer um infarto.)
    Final muito legal, eu nunca imaginava que o cara do bilhete era o cara que tinha matado o noivo.
    Ah e ri muito da piada em frente ao túmulo do Nelson Rodrigues.
    Querida, parabéns, mal posso esperar pra ler outros contos seus..

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  2. Que bem escrito... Nossa acho muito difícil escrever como narrador - observador, cada mínimo detalhe, nõ sei se seria capaz de fazer algo tão perfeito e minuscioso... me dou muito melhor escrevendo como narrador-personagem!!! Parabéns!!

    Mih Rehbein

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