sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Palhaços Macabros — A Última Sessão - Partet II

III

Chegamos num ponto de nossa história em que é preciso dar nome aos bois, tanto por respeito aos sobreviventes, quanto pela dificuldade em conseguir sinônimos suficientes para suprir o anonimato em larga escala. Caso o leitor não seja lá muito simpatizante da nomenclatura tardia, sugiro que pule de parágrafo, embora não tenha como me responsabilizar por pequenas confusões que tal atitude possa causar.


Fernando – Poirot, garoto das horas, grande fã de intrigas policiais.

Renato – o rapaz de cabelo estilo militar, primeiro a sugerir a evasão do local do crime.

Helena – a mulher das chaves, assassina confessa de um vira-lata na semana anterior.

Isabel – a adolescente namorada do Conan.

Roberto – o Conan.

Adilson – mais velho da turma, pioneiro no achamento dos corpos.

Érica – a menina cujo pai é fiscal do shopping.

Stephanie – tão sarcástica quanto Fernando, a única garota entre os quatro que descobriram os palhaços.

Júlio – outro membro do quarteto descobridor.

Hugo – nosso protagonista, que começa a achar aquela “surpresa do cotidiano” menos divertida a cada minuto.


Aqueles cujos nomes não constam da lista acima são quase figurantes neste caso, possuindo suas contribuições teóricas um caráter lacônico e dispensável, com o perdão da redundância. Para que não venham alegar, porém, que eu os esqueci completamente, sempre que se deparar com uma fala cuja autoria seja atribuída vagamente a um pronome indefinido (“alguém”, por exemplo), esteja à vontade para pensar neles.

Voltamos, finalmente, o foco de nosso interesse para a base da escada de mármore, onde ocorria a seguinte deliberação por parte dos sobreviventes, acerca das circunstâncias atuais:

— Acham que nos viram?


— Talvez. Apesar de o vidro escuro só ser translúcido para um dos lados, nos olham como se pudessem enxergar aqui dentro sem problemas.


— Caramba, quem são esses caras?! — espantou-se Renato, fazendo o sinal da cruz após espiar pela segunda vez o grupo bizarro no exterior do shopping.


— Primos do Ronald McDonald é que não — garantiu Stephanie, e desatou a explicar — Quando vimos que as portas alternativas também não abriam, resolvemos descer pra, sei lá, tentar quebrar os vidros das saídas principais com um extintor de incêndio...


— Não iam conseguir — Roberto interrompeu — Os vidros foram...


— Blindados depois do assalto — completou a garota, cansada — O Júlio nos lembrou isso depois. Só que aí já tínhamos desistido do plano A, pois encontramos os amigos do Bozo parados aí fora.


— E partimos para o plano B — concluiu Júlio: — arrombar lojas de prestígio e torcer pro alarme silencioso chamar a polícia. Escolhemos a Prada e a Tube no segundo piso.


— Deu resultado?


— Estão ouvindo alguma sirene? — devolveu Stephanie, sarcástica.


— Acham que é o mesmo pessoal que roubou aqui da outra vez? — alguém perguntou, fitando os palhaços.


— Tudo é possível — ponderou Helena — Mas não faz sentido que ainda estejam do lado de fora...


— A menos que esperem reforço para invadir novamente — arriscou Hugo, soando menos otimista do que pretendera.


— Mas se já estavam dentro, por que sairiam? — refletiu Isabel, metódica.


— Como, “já estavam dentro”?


— Ué, decerto foram eles que mataram os cinco no terceiro andar, não?
— Mas sem sombra de dúvida! — trovejou Adílson, parecendo aliviado — Claro que foram eles, olhem aquelas facas!


— Então tava mesmo todo mundo morto lá em cima? — quis saber Júlio, do alto de sua vã esperança.


— Fatiados, companheiro — disse Fernando, soturno — E os pedaços dispostos no chão, formando uma palavra que se justifica agora.


Todos o olharam intrigados.


— “SORRIA”, gente — explicou o garoto — O que é mais inerente a um maldito palhaço?


Houve um silêncio de macabra compreensão.


— Nunca gostei de palhaços — alguém confessou, enquanto Renato se espichava para vê-los outra vez.


— E aqueles ali nem humanos parecem... Vejam os olhos!


— Devem estar usando máscara. Quadrilhas fazem isso.

Hugo sentiu que aquilo equivalia a chutar cachorro morto:


— Galera, essa conversa não vai nos ajudar em nada. O que quer que seja que esses caras estão esperando, devemos dar um jeito de buscar ajuda antes que entrem aqui e peguem a gente.


— O garoto tem razão.


— Mas se já disseram que o alarme não funciona...


Hugo voltou-se para os quatro anteriormente dispersos:


— Viram se há palhaços em todas as saídas?


— Algumas portas são opacas, não dava pra ver — disse Stephanie — Nas demais, sim, pelo menos quatro palhaços em cada uma.


— Tudo isso?! — horrorizou-se Helena.


— É, mas pode ser que nem todas sejam guarnecidas ao mesmo tempo. — contrapôs Fernando — Se enxergaram vocês, capaz de terem corrido pros outros postos, para dar impressão de multiplicidade.


— Exato — concordou Hugo, e, para a taciturna Érica — Você disse que seu pai trabalha aqui?


— Sim. Não faz muito tempo que foi transferido...


— Tempo suficiente para saber a localização da sala de monitoramento das câmeras de segurança?


— Ah... Sim, claro que sim. A sala fica, se me lembro bem, no...

— Não precisa explicar, você vem comigo.


— O que pretende fazer, rapaz?


— Se pelo menos um de nós puder escapar, é o suficiente para buscar socorro. Lembro agora que quando trabalhei nas Americanas daqui, coisa de seis meses atrás, fazíamos o descarregamento dos caminhões com novas mercadorias pela área de serviço, onde há um elevador especialmente para esse tipo de acesso. É um lugarzinho bem escondido, quase invisível, o que não significa que não seja vigiado pela segurança do shopping. Se eu conseguir encontrar o foco da câmera que o monitora nesse momento e a barra estiver limpa, como suponho, desço em silêncio pelo elevador e ligo pra polícia do orelhão mais próximo.


— E por que não podemos descer todos? — inquiriu Adílson, inepto como sempre.


— O elevador é pequeno, e chamaríamos muita atenção — explicou Hugo, como se fosse necessário. — O lance nesse caso é a discrição máxima: enquanto virem pessoas aqui dentro, os palhaços não desconfiarão de que alguém está tentando fugir.


— Mas não acha que precisará de cobertura, caso a tal passagem não esteja deserta, mas apenas “guarnecida em menor número”? — perguntou Isabel, perspicaz.


— Bem...


— Eu vou com você — ofereceu-se Roberto prontamente, enchendo sua namorada de orgulho. Como ele seria mesmo o escolhido (por razões óbvias e anabolizadas), Hugo limitou-se ao consentimento. Houve, entretanto, mais solidariedade:


— Também vou — disse Júlio — O amigo aí é grande, mas não é dois.


— E se com minha espada eu puder defender a bunda branca do Hastings, assim o farei — disse Fernando, parodiando O Senhor dos Anéis enquanto afrontava a liderança de Hugo e concedia um raro momento de descontração aos aflitos sobreviventes, tudo ao mesmo tempo.


— E eu vou porque... — começou Stephanie, sob olhares espantados — Ah, precisa ter uma mulher no grupo, ora!


Fernando olhou-os emocionado:


— Somos a Sociedade do Elevador...


— Cala a boca! — advertiu o líder, e em seguida tirou o rádio transmissor que guardara no bolso para entregar a Helena — Qual o seu nome, senhora?


A mulher respondeu, não sem antes corrigir o pronome de tratamento para “senhorita”. Hugo também se apresentou.


— Certo, Helena, quero que fique com isso; se os palhaços derem a impressão de ter notado alguma coisa ou simplesmente saírem correndo, você aperta o botão amarelo e nos avisa, ok?


— Mas como vão ouvir...?


— O Poirot pegou o outro rádio na cena do crime. — explicou Hugo e, para Fernando: — Achou que eu não tinha visto, amigo?


Ele deu de ombros. A comitiva partia.


— E se virem um caminhão se aproximando das portas, saiam correndo — Stephanie ainda aconselhou — Ele provavelmente vai dar ré e arrebentar tudo...


Hugo, Érica, Júlio, Roberto, Stephanie e Fernando concordaram que seria mais prático declinar dos degraus de mármore e tomar o elevador do setor sul para subir até a sala das câmeras, que, segundo a primeira garota, situava-se nalgum ponto entre o acesso ao estacionamento coberto e o almoxarifado de uma loja de eletrodomésticos, no quarto andar. Passavam das duas da manhã, embora eles não soubessem disso. Hugo sentia especial raiva de sua dependência ancestral do celular para saber as horas, e verdadeira aversão pela filosofia de cassino adotada por dirigentes de shoppings: “nada de relógios à vista, mantenha os clientes gastando dinheiro sem dar a mínima para o tempo que isso possa levar”.

A caminhada até o elevador foi taciturna. Uma vez dentro dele, porém, fizeram-se as apresentações cabíveis rapidamente, e Stephanie pareceu levemente desconfiada ao formular a seguinte pergunta aos demais, exceto Júlio:


— Vocês demoraram muito lá em cima, o que aconteceu?


— Acredite, todas as conclusões a que chegamos naquele banheiro caem por terra com o surgimento dos palhaços — disse Fernando, evasivo.


— Ainda bem, não é? — ponderou Roberto, mãos no bolso — Aquele papo paranóico de que um de nós era o assassino tava deixando todo mundo assustado...


— Como é que é? — horrorizou-se Júlio.


— Olha, tudo o que você e a Stephanie precisam saber sobre o banheiro lá de cima é que... — e Hugo repetiu em linhas gerais a gravação contida no aparelho que entregara a Helena. Os dois leigos escutaram pasmados. Quando terminou, as portas de metal do elevador já se abriam, descortinando a última parada.


— 21 mortos? Quer dizer que estão...


— Contando com a gente, exatamente.


— Mas e a lenda? — perguntou Stephanie, confusa, enquanto caminhavam.


— Quê que tem ela?


— Não se encaixa. Você disse que a gravação termina falando que 21 pessoas morreram “sob circunstâncias similares”. Ou seja, queimadas, não é? Mas se os corpos lá no banheiro estavam só cortados em pedaços...


— Você diz “só”?


— Peraí, ela tá certa. — apoiou Fernando — Essa parte eu também não saquei direito. Se bem que assassinos não precisam ser lógicos na vida real...


— Acham que podem estar planejando botar fogo no shopping com a gente dentro? — engrolou Roberto, que até diminuía em estatura nesses rompantes de covardia. Ninguém respondeu imediatamente.


— Vamos torcer para que haja extintores suficientes — concluiu Érica, que guiava o grupo pelos corredores lúgubres do quarto andar — Chegamos.

A porta de madeira simples do setor de segurança surpreendeu a todos por dois motivos: o primeiro é que estava aberta, justificando a extrema cautela com que o grupo executou o simples ato de cruzar em alguns milímetros o limiar que separava o cômodo do corredor. Constatando-se também sua desertificação, evidenciou-se a segunda surpresa: um cheiro forte o bastante para ser percebido, mas fraco demais para intoxicar impregnava o aposento. O aroma possuía para o sexteto uma familiaridade recente, embora ninguém conseguisse recordar onde o havia inalado pela última vez. Mais para aplacar sua curiosidade do que por qualquer outra coisa, empenharam-se na procura da origem do odor. Foi Fernando quem obteve sucesso, ao retirar da parede o gradil que cobria uma das muitas saídas de ventilação dando nas salas de projeção, um andar abaixo.


— Botaram a gente pra dormir — disse o garoto, ao despejar pelo menos uma dezena de frascos spray quase vazios no chão da sala. Os rótulos dos objetos haviam sido raspados e os “gatilhos” colados com fita adesiva, de modo a pressionarem ininterruptamente o esguicho para baixo, até que todo o conteúdo da lata se exaurisse.

— Isso é lança-perfume? — perguntou Roberto. Fernando assentiu.


Nesse momento, Stephanie e Júlio expressaram, como se houvessem descoberto a pólvora, suas confirmações individuais sobre terem de fato caído no sono na sala de cinema. Hugo lhes explicou, enigmático, que há pouquíssimo tempo atrás aquela informação os teria colocado numa pequena lista de privilegiados fora de suspeita.


— Explica muita coisa — prosseguiu Fernando, apontando as latas — O “sob condições similares” da gravação não se referia ao incêndio nas ocas onde os índios batiam as botas, afinal, mas ao fato de eles terem morrido enquanto estavam subconscientes: dormindo, drogados, sei lá. A pergunta é: por que nos dopariam se não tinham intenção de matar?


— Como sabe que não? — interveio Roberto — Talvez pensassem que a quantidade de lança-perfume fosse suficiente para fazer o serviço.


— Foi exatamente o que pensei — continuou o outro — E, tendo um pouco de imaginação, é possível supor que dessem o trabalho por concluído, mas aí apareceu o quarteto fantástico lá no térreo e eles souberam que tinha gente viva aqui dentro. As portas terem travado milagrosamente nessa hora é que não bate.


— Tudo bem, depois a gente vê isso — impacientou-se Hugo, e se virou para o mosaico de imagens dispostas em cinco monitores de pelo menos quarenta polegadas, inclinados sobre um painel repleto de botões, luzes e pequenas alavancas, no outro extremo da sala. Os amigos o imitaram. Antes, contudo, que dessem início à busca específica pela câmera que monitorava a área de serviço, algo sumamente suspeito saltou aos olhos no monitor com a etiqueta “externo” sob a tela: o lado de fora do shopping encontrava-se absolutamente deserto.


— Cadê os palhaços?


— Será que fugiram?


— Mas por que a Helena não ligou?


— Fernando, pega o rádio. Rápido.

O menino obedeceu.

— Olha só, alguém acionou os sprinklers da sala dois do cinema! — exclamou Stephanie, indicando uma luzinha verde “On” que piscava sobre o rótulo “Spk” da sala correspondente. — Por isso tinha água no chão quando saímos de lá.

— Verdade, eu reparei nisso também...


— Mas como os sprinklers foram ativados e ninguém viu?



Hugo recebeu o rádio. Não teve tempo de dizer que nem percebera a água de que os amigos falavam.

No piso térreo, Helena acabara de lembrar uma coisa que lera havia alguns meses numa revista empresarial local. Os dirigentes daquele shopping, visando um tal marketing psicológico, haviam providenciado para que em todos os corredores dando para as saídas principais houvesse uma parede de ângulo pouco mais fechado em relação às portas magnéticas, na qual seria estampada, em tamanho natural, uma foto do exato panorama que o cliente tinha ao sair do shopping por aquela porta. Isso criava, eventualmente, uma agradável sensação de Dejà Vu, embora muitos não soubessem como tal atitude poderia beneficiar o estabelecimento, financeiramente falando.


Foi mesmo enquanto acabava de contar essa curiosidade aos demais que a mulher escutou, assustada, o chiado do rádio transmissor que enfiara na bolsa.

“Helena”, dizia a voz “Helena, você tá aí?”


“Estou, sim, Hugo, pode falar”


“Ainda estão atrás da escada?”


“Positivo”


“Pra onde os palhaços foram?”


“Como assim?” e Helena pôs metade do rosto para fora da escada “Eles continuam aqui, ué”


“Não é possível, as câmeras mostram o lado de fora do shopping completamente vazio”


“Ora, mas como...”

Ela estacou no meio da frase. Acabara de lhe ocorrer que o único palhaço visível lá fora fazia um movimento muito semelhante ao dela com o rádio próximo à boca, substituindo-se o aparelho pela faca ensangüentada. Acenou displicentemente para o outro — e o que viu a fez estremecer.


“Hugo, espera só um minuto” pediu, e, para os demais:


— Pessoal, vamos para frente da escada.


— O quê?! — sibilou Renato — Você enlouqueceu?


— Helena, é melhor a gente não se expor demais...


Mas ela estava decidida. Levantou-se e deu a volta nos degraus de mármore, até ficar de frente para as portas magnéticas travadas.


— O que ela tá fazendo?!

— Vem todo mundo pra cá agora!


Algo na voz dura e temerosa da mulher fez com que cedessem. No instante exato em que todos saíam do esconderijo, um grupo de palhaços equivalente apareceu através do vidro defronte. Muitos quiseram voltar para trás da escada ao deparar-se com semelhante visão, mas Helena os manteve firmes:


— Levantem os braços — ordenou.


— O quê?


— Você bebeu?


Só levantem os braços, por favor.


Confusos, obedeceram. Os palhaços, em sincronia perfeita, fizeram exatamente o mesmo movimento.


— Como eu suspeitei... — sussurrou ela, trêmula, e, voltando a falar no rádio: — A inclinação da foto na parede faz parecer que estamos vendo o exterior do shopping, mas isso está errado! Hugo, não são palhaços de verdade. É o nosso reflexo no vidro das portas!


— O quê?! — berrou o garoto, quatro andares acima.

E naquele momento a luz de todo o estabelecimento se apagou.

— O que foi isso?!
— Quem mexeu no interruptor?
— Meu Deus!
— Alguém entrou no shopping! O elevador foi solicitado aqui em baixo!
— Vai! Vai!

A confusão de vozes no rádio assustou mais os seis na sala de projeção do que a queda de energia em si. A sorte foram os monitores de segurança, que mantiveram o cubículo na penumbra enquanto tentava-se decifrar que diabos ocorria no piso térreo.


“Helena! Helena, o que foi?!”, Hugo gritava.


— Ela disse que não tem palhaços? Como é possível?


— Não sei...!


— Alguém entrou, eles falaram do elevador.



Nesse instante, a luz retornou, vacilante, como se indecisa sobre qual fase escolher.


— Hugo, as câmeras!

As imagens nos monitores se multiplicavam em inúmeros quadros coloridos e estáticos. A movimentação na escadaria do primeiro andar chamou logo a atenção para o grupo que subia os degraus, quase em desespero.


— Deve ser o pessoal da limpeza no elevador — disse Érica, apontando — Meu pai diz que eles sempre mexem nas instalações elétricas, quando algum funcionário esquece de apagar qualquer luz interna, ao sair.


— E a galera não estaria correndo atrás dele, se não fosse — observou Fernando.


— Bora descer!

A luz continuava a oscilar quando o grupo seguiu apressado pelos corredores em direção à escada mais próxima, já que o elevador estava ocupado. O cheiro fraco do composto químico se dissipou por completo. Érica fechava a fila. Roberto ia na frente, e foi o primeiro a botar os pés no já conhecido pavimento do terceiro andar. Mas o elevador chegara primeiro.


— Estão indo pro cinema! — Stephanie berrou, apontando os três homens uniformizados que já corriam ao final da passarela que dava no conjunto das salas de projeção. Seis vozes gritaram por eles. Não lhes deram atenção. Era como se alguém os tivesse alertado para um problema sério ocorrido nalguma sala por ali.


— São surdos?


— Vamos!


Hugo não podia reprimir a leveza que se apoderara de sua alma com a simples visão daqueles seguranças. Estavam salvos. Não importava quantos depoimentos precisaria dar ou as broncas que iria ouvir. O pesadelo chegara ao fim, e a imagem dos amigos correndo agora a seu lado na passarela era registrada em deliciosa câmera lenta. Na pior das hipóteses, sairia dali com pelo menos mais 7 pessoas com quem dividir um saco de pipocas, na próxima vez que fosse ao cinema — ia demorar bastante, é verdade. Aquela noite entraria para a História, e provavelmente repetiria o relato da angústia que vivera num certo shopping umas cem vezes aos filhos e netos, acrescentando heroísmos e suprimindo covardias, quando a senilidade o impedisse de distinguir o “já contei” do “não contei”.

Pobre Hugo...

A larga porta da sala dois era a única aberta, e por isso o sexteto da “Sociedade do Elevador” considerou que os homens da segurança só podiam ter entrado por ela. Estava certo.


— Nós estamos aqui... — ofegaram, como se alguém se importasse com isso. Foram recebidos a exclamações de “Meu Deus!” e “Quem é capaz de fazer uma barbaridade dessas?!”, embora não se dirigissem a eles “no estado atual”.


Hugo, Stephanie, Júlio, Roberto, Érica e Fernando olharam para as poltronas no alto e levou tempo até que se atrevessem a tentar compreender. Os dez do térreo também aportaram na sala naquele instante. Outra vez nenhum segurança lhes deu atenção.



E naquele momento, uma antiga lenda indígena aflorou com nitidez cristalina às mentes de 16 pessoas, quando estas se depararam com outras 16 figuras humanas metidas em vestes circenses, de maquiagem borrada, feições zombeteiras, facas de plástico nas mãos e olhos horrivelmente virados nas órbitas.



A subconsciência evoluíra para o estágio seguinte, e enquanto os “sobreviventes” do shopping acreditavam-se lutando para permanecer neste mundo, seus corpos jaziam sentados em poltronas de veludo vermelho, alguns metros acima, definindo a aparência dos que habitavam o próximo sem saber já há algum tempo.


IV

A fita elástica que outrora organizara o fluxo da fila para o cinema no Shopping New Horizon fora substituída por um feio exemplar de plástico, com coloração ora amarela, ora preta, isolando o acesso de estranhos que ainda não haviam chegado a todas as salas de exibição no terceiro piso. Dois homens conversavam em frente à enorme tela da sala número 2, enquanto um grupo de peritos tirava fotos do local e examinava os corpos dispostos aleatoriamente pelas poltronas em ascensão. A estatura divergente de ambos também servia para ilustrar a posição ocupada na hierarquia da polícia.

— Algum sobrevivente aqui?


— Nenhum, capitão. Ainda não foi possível precisar a hora da morte, mas logo teremos essa informação. Como vão as coisas lá no banheiro?


— O pessoal da Politec chegou há algum tempo. Vexame, nem eram corpos de verdade.


Não?! E o que eram?


— Bonecos de cera. O galão em cima do urinol continha vinho Brunello di Montalcino. Um dos peritos é enólogo — explicou, ante o olhar indagador do subordinado — O maníaco que fez isso deve ter gasto uma nota só para fazer parecer que esquartejara os cinco funcionários verdadeiros aqui em cima, quando fez praticamente a mesma coisa, no subsolo, por outros meios.


— Encontraram os verdadeiros fiscais?


— Nus, dopados e amarrados, no estacionamento subterrâneo. A ambulância já os levou para o Pronto-Socorro, mas não creio que vão escapar com vida. Não depois da promessa que o assassino fez no rádio que achamos sobre a escadaria do segundo andar.


— A propósito, encontramos o outro rádio, aqui na sala.


— Alguma nova pista?


— Nada, só estática. Alguns ruídos de risada, conversas anteriores dos funcionários...


— Não dá pra entender esse cara. Ele dá um jeito de bloquear o sinal de comunicação com qualquer pessoa aqui dentro, mata todo mundo, veste os corpos como palhaços, arromba duas lojas, não rouba nada, forja uma carnificina, grava uma lenda idiota e liga pra segurança daqui de um orelhão, informando o que fez.


— E pensar que podia ser ainda pior. Quer dizer, as portas do shopping ficaram a noite inteira abertas, imagina se alguém entra para saquear essas lojas granfinas?


O capitão fez um gesto vago, afastando mais essa chateação hipotética. Depois, indicando novamente os cadáveres com o queixo quadrado:


— Qual a causa da morte?


— A princípio, inalação excessiva de triclorometano.


— Diabo, Nascimento, fale em língua de gente!


— Clorofórmio, capitão. Ou lança-perfume, como é mais conhecido. Encontramos latas do composto no chão da sala de monitoramento das câmeras de segurança, além de outras contendo óxido nitroso.


— Gás do riso, não é? — perguntou o capitão, pois lembrava-se muito bem da polêmica recente no alto escalão da Polícia Militar sobre o uso do composto que causava contrações musculares involuntárias nos suspeitos, dando a impressão de que sorriam, e que podia levar à cegueira devido ao ressecamento da retina. Nascimento aquiesceu.


— Foi ele que deixou os rostos dos dezesseis desse jeito — completou.


— Certo. Mas existe alguma outra linha de investigação para a causa da morte?


— Positivo. Veja bem, o assassino parece ter acionado os sprinklers desta sala, o chão ainda estava um pouco encharcado quando chegamos. E, se o senhor olhar lá no alto, há um cabo de alta tensão desencapado encostando no piso. Foi retirado da fiação do ar-condicionado.


— Como, choque elétrico?


— Fulminante. Isso explicaria os olhos virados e as fezes em alguns cadáveres, pois a eletricidade demasiada torna o corpo humano incontinente.


— Jesus...

Os dois policiais quedaram em silêncio. Os flashes das câmeras periciais enchiam a sala de luz e cliques.

— Qual o nome do filme que era exibido aqui?


— Aí é que está a ironia, capitão. Segundo o informativo na bilheteria, o filme era uma comédia boba intitulada “A Última Risada”.


— E foi mesmo... Bem, eu vou até lá embaixo ver como anda a busca por mais pistas. Continuem trabalhando, daqui a pouco chega a imprensa e os familiares e vão ver a dificuldade que é...

E o homem interrompeu a frase na metade, fitando assustado a entrada vazia da sala.


— O que houve, capitão?


— Bobagem... — disse, esfregando os olhos. — Por um instante, me pareceu ter visto um palhaço em pé na, porta...

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