segunda-feira, 2 de março de 2009

O cômico caso do entregador de doces
{Acsa Fialho}

O sol estava nascendo em um novo dia, segundo o que ele pôde observar através dos olhos entreabertos voltados à monotonia da janela. Ainda com preguiça, esfregou os olhos, afastando as cobertas de cima do corpo magro, e finalmente se levantou.
Após lavar o rosto – que ainda apresentava crateras das impiedosas espinhas da adolescência –, ele pensou na agradável hipótese de tomar um café gelado, como ele gostava, antes de ir para mais um estressante e agonizante dia de trabalho.

― Porcaria de casa ― murmurou ele de si para si, correndo os olhos ao redor. A modesta casa onde morava ainda apresentava sinais protuberantes de uma pintura mal feita, e isso estava patente nas paredes descascadas.

Os móveis haviam sido comprados com bastante esforço, e eram todos usados. Viver sozinho sempre fora normal para Mike. Ele havia crescido em um convento, cuja entrada de rapazes era completamente proibida, mas as freiras o criavam às escondidas. Seus olhos caíram no porta-retratos que emoldurava a fotografia em que ele abraçava um cachorro vira-latas. As lembranças surgiram como raios de sol em plena manhã...

― Ei, fique quieto, Bartolomeu, pare de se mexer! ― disse o pequeno menino agachado, batendo no focinho do cachorro. Os dois estavam em um corredor de um convento nas lembranças de Mike. ― Já lhe disse pra ficar quieto, porcaria! Quer ver mulheres? Tem de ficar quieto ― e virou-se para o lugar onde estivera tentando encontrar alguma fina passagem de uma mulher desprovida de roupas. Cerrou os olhos a fim de enxergar melhor pelo escasso espaço da fechadura da porta.


Então, passou uma silhueta esbelta, cujo ventre estava nu, e o tronco coberto por uma fina camada de renda. O menino quase chorou de emoção. Então, a mulher foi em direção a um armário, abriu a porta e de dentro do armário emergiu uma silhueta forte, e parecia ser masculina. Os dois se atracaram em um forte afago.

― Estou vendo uma mulher, Bartolomeu. E é das boas, você precisa ver ― disse ele, batendo de leve no corpo que ele achava ser do cachorro, enquanto permanecia com os olhos na fechadura. ― Bartolomeu? ― e se virou para checar se era mesmo o seu cachorro. Ao contrário do que imaginava ver, a freira diretora do convento – e que não sabia da existência do menino – batia os pés no chão, fitando-o com um olhar reprovativo.

― Qual é o seu nome e o que você estava fazendo? ― perguntou ela com uma voz áspera.

― Hã... M-meu nome é M-Mike, senhora ― ele gaguejou, percebendo que suas mãos tremiam.

― Levante-se, seu pecador! Você estava espiando as pobres alunas? Meninas puras e santas; você não tem vergonha, seu animal?

O pobre menino mal pôde conter o riso ao ouvir a palavra “pura” e “santa”. Mal sabia a pobre freira o que a menina fazia dentro do quarto...

― Me desculpe, senhora. Eu estava procurando... Hã... A minha irmã.

― Pare de ser me contaminar com seus pecados, seu salafrário! Além de fornicar, ainda mente? Acho que você está endemoninhado, vou convocar o padre August para vir te exorcizar, você vai ver.
― Mas eu só estava... ― e antes que ele concluísse seu pensamento, a freira o puxou pela orelha, arrastando-o em direção a algum lugar que não dava para discernir. O menino berrou, tentando puxar as mãos da mulher, coisa essa que foi completamente inútil. Então, após descobrir que o menino morava no convento, e sem nenhum pingo de piedade sobre a qual a freira pregava, ela o expulsou mesmo sabendo que ele não tinha aonde ir.

A lembrança fez com que Mike sorrisse, e tal atitude pareceu absurdamente louca, visto que as lembranças eram amargas e tristes. Ele preferiu não olhar mais para o retrato, e após se enfiar em um casaco qualquer, tomou um gole do café de dois dias atrás e saiu em direção ao trabalho. Lá fora, o céu esplêndido. Raios de sol penetravam o mundo, acompanhados de uma gélida neblina matinal. Mike não era o que se pode chamar de “homem de sorte”. Na verdade, tudo em sua vida dava errado desde que ele se entendia por gente. Desde o nome – que, particularmente, ele detestava – até as coisas mais banais, como mulheres ou vida secular.

As mãos estavam enfiadas nos bolsos, a cabeça baixa, os pés andando rápido ao dobrar uma avenida. “Como ela fez isso comigo? Mas que vadia!”, murmurou ele para si mesmo, lembrando de uma mulher que o havia enganado com seu próprio chefe. Mas, enquanto tentava concluir seus pensamentos, uma buzina ensurdecedora o interrompeu.

― Quer morrer, seu animal?! ― berrou um homem gordo de dentro de um caminhão, que, por pouco, não o havia atropelado. Mike ergueu as mãos em um sinal de desculpas.

― Hã... Me desculpe, senhor.

― Me desculpe? Você quer saber pra onde você deve levar suas desculpas?!

Mas Mike não ficou para saber. Atravessou a rua com os passos rápidos, e olhou de relance para o relógio.

― Diabos! Praga dos infernos! ― rosnou ele, percebendo que estava vinte minutos atrasado. Ao concluir o pensamento, apertou os lábios para não praguejar quando sentiu a perna mergulhando em uma poça de água barrenta. Chutou o ar e continuou andando, ainda com as mãos nos bolsos e o olhar estressado.


Vinte minutos depois...

― Me dê um bom motivo pra que eu não arranque sua cabeça. Me dê um bom motivo pra que eu não te demita ― disse um homem com a voz ríspida. O homem não tinha uma aparência agradável; os olhos eram grandes e escuros, um bigode emoldurava o nariz gordo e os lábios finos. Debaixo da jaqueta, o homem escondia um generoso ventre. Ele estava tamborilando os dedos numa bancada asquerosa, enquanto levava a extremidade mais larga de um palito aos espaços entre os molares. ― Vou te dar cinco segundos. Um... Dois... Três...

― Hã... Eu perdi o ônibus, senhor ― respondeu Mike com um olhar receoso. O homem riu.

― Perdeu o ônibus? Todos os dias você me diz que perdeu o ônibus! Quer saber, vou te contar uma coisa ― e aproximou-se do rosto de Mike, assumindo um tom de voz especial ―, minhas mãos estão coçando pra não caírem nesse seu rosto de adolescente na puberdade ― e empurrou o corpo de Mike, que deslizou alguns metros no piso da loja.

― Me dê mais uma chance, senhor Burns. O senhor sabe que estou quebrado, preciso da grana até conseguir outro emprego.

O homem pareceu pensativo, e transcorrido longos segundos, finalmente disse:

― Escute bem, seu pedaço de esqueleto, vou te avisar uma coisa. Se você se atrasar outra vez, juro que quebro seus dentes e termino de esburacar seu rosto, estamos entendidos?

― Claro, senhor ― e após ouvir a resposta, o homem sorriu falsamente e voltou-se para o lado oposto, indo em direção a uma caixa grande e larga. Colocou-a nos braços fartos, enquanto conferia se estava tudo em ordem, e em seguida a entregou nas mãos de Mike. ― Leve essa caixa neste endereço ― e apontou para alguns nomes rabiscados na superfície da caixa. ― Entregue para senhor ou senhora Kung, eles são japoneses e meio velhos. Vão te entregar sessenta dólares, e acho bom que não falte nenhum centavo quando você voltar.

― Sim, senhor.

― Tome isso, pra ser mais rápido ― o homem entregou as chaves de algum carro nas mãos de Mike. ― Dirija com cuidado. Juro que se você fizer algum estrago, eu...

― Não se preocupe, senhor Burns. Irei me cuidar. ― Respondeu Mike, recolhendo as chaves e caminhando para o lado oposto.

Fora da pequena loja – Doces Swan –, ele avistou a picape vermelha com a qual provavelmente ele teria que fazer a entrega. Após se acomodar no assento do carro, ele colocou a caixa em uma posição confortável para que não capotasse com os movimentos do trajeto.
Já estava dirigindo há algum tempo, embalado com uma música qualquer. Então, durante uma parada normal em um sinal fechado, tudo o que ele sentiu foi o impacto de um enorme Jipe batendo nas costas do carro. Seu coração quase parou. Ele desceu do carro com um olhar fulminante.

― Onde você comprou sua carteira, seu imbecil?! ― berrou ele para quem quer que fosse o motorista. Mas, para seu espanto, um homem bastante alto, desprovido de cabelos, com várias tatuagens pelo corpo, desceu do carro retribuindo o olhar.

― Quem é o imbecil, valentão? ― perguntou.

― Hã... Bem, você bateu no carro e...

― Você é muito corajoso, não é? Me faz lembrar o palito de fósforo que acabei de queimar pra acender meu cigarro.
Então, lhe ocorrendo uma idéia, Mike fez uma careta, recuando alguns passos em direção à picape.

― Quer saber? ― ele perguntou quando já estava próximo o bastante do carro. ― Vá pro inferno, seu imbecil! ― e entrou na picape com os passos acelerados. Bateu a porta, enfiou a chave na ignição, e fez várias tentativas de ligar o veículo, o que foi inútil. Por algum motivo, o carro não estava funcionando. Olhou pelo retrovisor; o homem estava indo em direção ao carro. ― Mas que diabos! Liga logo, seu maldito carro!

Então, o homem abriu a porta – que Mike se esquecera de trancar – e puxou a gola dele até que estivesse caído no chão.

― Mas que coragem você tem! ― disse ele, e em seguida desferiu alguns chutes, socos e pontapés no coitado que, por bastante medo ou puro nervosismo, não estava sequer gemendo pelo ocorrido.

Após a sessão de espancamento, o homem foi embora e deixou Mike sozinho no asfalto, enquanto carros buzinavam mais atrás para que a picape saísse do caminho. Com deliberado vagar, ele caminhou até o carro que, agora, já funcionava. Ao avistar o restaurante Kung’s Chinese Food, ele estacionou a picape batida na frente do estabelecimento e desceu com as caixas nos braços repletos de hematomas.

― Você deve ser o senhor Kung ― disse Mike com dificuldade, observando um velho homem de olhos pequenos e repuxados. O homem sorriu.

― Ei, meu filho, o que houve com seu rosto? Você está um lixo, uma desgraça, um farrapo, um caco, um verdadeiro mendigo, um...

― Tudo bem, eu já entendi ― disse Mike, entregando a caixa. ― Vim a pedido do senhor Burns, da loja de Doces Swan.

― Você parece triste. Quer um biscoito da sorte?

Com a fúria aglomerada dentro de si, Mike olhou para o homem e respondeu:

― Pegue esse biscoito da sorte e...

― Tudo bem, você precisa de um biscoito da sorte ― o homem caminhou rumo ao caixa e destampou um pequeno vidro. De lá, ele retirou um biscoito pequeno e entregou para Mike. ― Vai fazer você se sentir melhor.

Mike pensou em mandar o homem para os infernos, mas resolveu aceitar. Abriu o biscoito e uma pequena faixa de papel estava enrolada sobre si mesma. Após comer o biscoito, Mike sentiu algo percorrendo suas veias, mas achou que fosse só impressão sua. Na faixa, estava: Boa ou má sorte. Tudo depende do que você vê. Feche os olhos e os abra outra vez. A primeira coisa que ver, lhe trará paz de espírito e sorte também.

― Que baboseira ― disse Mike, jogando o papel em um lixo.

― Não jogue fora, meu filho ― disse o homem. ― Faça o que está dizendo no biscoito.

― Tudo bem, tudo bem ― resmungou Mike, fechando os olhos de má vontade. Ao abri-los outra vez, deixou-os cair na caixa de biscoitos da sorte que estava sobre o caixa. ― Satisfeito?

― Quando você sair daqui, estará com mais sorte do que imagina.

― Tudo bem, vou fingir que acredito ― disse Mike, saindo para o lado oposto. ― A entrega está feita, agora já estou indo. Tenho que me preparar para ser demitido e, com alguma sorte, sair vivo da loja do chefe.

Quando já estava fora do restaurante, viu um grupo de mulheres – bastante atraentes, segundo o que ele notou – acenando em sua direção. Ele olhou para trás, e achou estranho que não houvesse ninguém atrás dele.

― É você mesmo, doçura ― disse uma delas, se aproximando dele. Mexeu em seu queixo e sussurrou: ― Alguém já lhe disse que você é uma gracinha?

― Hã... Não... Eu acho. ― Ele respondeu com uma expressão tão assustada quando poderia estar em uma situação como aquela.

― Pegue meu telefone ― disse ela, entregando um pedaço de papel nas mãos dele, e em seguida piscou. ― Me ligue quando quiser ― e foi-se para o lado oposto, pisando sobre o solo de maneira graciosa. Mike se beliscou para ter certeza de que aquilo era real, e olhou para o restaurante do senhor Kung.

― Não é possível... ― ele murmurou para si mesmo. Antes que completasse seu pensamento, um homem vestido com um elegante paletó, acompanhado por câmeras e pessoas vestidas com uniformes de uma emissora de tevê, sorriu para ele e acenou.

― Ei, você! É, você mesmo! ― e virou-se para a câmera, apontando para Mike ― Estamos aqui, ao vivo, na Avenida mais movimentada de China Town! E encontramos um branco ocidental! Parabéns, você terá que responder apenas uma pergunta e poderá ganhar dez mil dólares!

― Quem é você?

― Sou Edmond Andrews, do canal seis. Vamos deixar as apresentações para outra ocasião. Responda: o que você faria se pudesse viver em gravidade zero? ― e piscou para Mike como se estivesse se dirigindo a uma criança.

― Hã... Eu flutuaria?

― Exato! E você acaba de ganhar dez mil dólares em dinheiro. Sorria para a câmera, rapaz ―
disse o homem, sorrindo profissionalmente. ― Gostaria de mandar algum alô para alguém?

― Acho que vou mandar para...

― Muito bem. Um alô pra esse amigo! Aqui está seu dinheiro, até mais. Vamos agora peregrinar em direção a outra pessoa! ― disse o homem, saindo para o lado oposto.
Após conferir que haviam dez mil dólares em notas seqüenciadas dentro do envelope, Mike correu até o restaurante do senhor Kung, empurrou o pobre homem no balcão e encheu os bolsos com todos os biscoitos da sorte que conseguiu.

― Esse negócio funciona mesmo!

― Ei, você está roubando meus biscoitos da sorte? ― perguntou o senhor Kung, levantando-se do chão.

― Exato! Eu sempre fui um azarado, e agora que tenho a chance de ter sorte, quero agarrá-la com todas as forças.

― Ninguém rouba os biscoitos da sorte do Kung ― disse o primeiro, assumindo uma expressão diabólica. ― Escute bem ― e apontou o dedo na direção de Mike ―, você vai comer todos os biscoitos, mas quando seu corpo tiver que jogá-los fora através dos excrementos, sua sorte se acabará!

― Corta essa, Kung. E obrigado! ― respondeu Mike, correndo em direção à picape.

Alguns minutos depois...

― Hã... Senhor Burns? Posso falar com você um instante? ― perguntou Mike, olhando esgueirado para o chefe.

― Diga.

― Um Jipe bateu na picape quando eu estava indo fazer a entrega para o senhor Kung e...

― Ah, a picape ― Burns gargalhou. ― Não se preocupe. O cara que bateu nela veio até aqui depois de ver a logomarca da nossa loja no carro. Ele disse que ficou com pena e resolveu pagar tudo. Conversamos muito e acabamos fechando um negócio! Ele tem um supermercado, e agora nós dois estamos trabalhando juntos. Vendo doces a ele. Bem, filho ― Burns segurou o rosto de Mike com as mãos ―, acho que você merece umas férias. Vou te dar um aumento!

Aquela afirmação fez com que Mike se sentisse pateticamente louco.

― Isso não pode estar acontecendo... ― murmurou para si mesmo. Então, percebendo que sua sorte era inquestionável, olhou para Burns e sorriu. ― Me desculpe, mas preciso me vingar. Sei que você não irá fazer nada! Isso aqui é por ter me chamado de esqueleto quatro vezes! ― disse ele, socando o rosto do homem. ― Isso aqui é por ficar com a minha garota! ― e socou-o mais uma vez. ― Esta é por nunca ter me tratado bem e esta é por algum motivo que não sei dizer ― concluiu, chutando a genitália de Burns, que caiu no piso da loja.

Após alguns minutos se contorcendo de dor, Burns se levantou e, diferente da reação esperada, disse:

― Eu merecia isso, filho. Admito! Não te culpo por nada.

Mike urrou de alegria, chutou o ar e correu para fora da loja.

― ESTE É O MELHOR DIA DA MINHA VIDA!


{Gente, posto o resto do conto depois, por ser um conto relativamente grande. O final é bem engraçado. Leiam esse pequeno trecho e comentem. Sugiram, critiquem... abraço!>

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