segunda-feira, 9 de março de 2009

16 Vidas

© 2009, by Gustavo Pierobom






Como de costume, todas as quintas feiras à noite, o aposentado Mark Stone, 68 anos, encontrava com seus dois amigos Jack e Stuart em um bar da zona leste de Nova Yorque, para juntos assistirem ao jogo dos Yanques. Naquela ocasião a partida seria contra o Red Sox. Stone foi o primeiro a chegar no local.

— Boa noite, Marie – disse cumprimentando a garçonete. – Vamos vencer hoje?

— Claro Mark – respondeu a moça sorridente. – E os rapazes?

— Ah... Já devem estar chegando.

Stone sentou-se em uma das mesas do quase lotado bar, onde todos os olhares estavam direcionados para a televisão. Após alguns minutos de espera, onde sua única companhia foi uma long nek de cerveja escura, ele avistou seus amigos chegarem, porém, desta vez, Stuart trouxera com ele seu neto de 12 anos, Stone fez um aceno aos amigos os chamando à sua mesa.

— Como vai Mark? – perguntou Jack, estendo a mão.

— Bem. E vocês? Stuart, vejo que trouxe Mike para assistir ao jogo. Como vai, garoto? – perguntou colocando a mão sobre o ombro de Mike, que respondeu com um tímido sorriso.

Todos sentaram-se à mesa, o jogo havia começado e agora o único assunto eram os jogadores, tacadas e pontos. Os mais velhos bebiam cerveja, Mike refrigerante, o garoto usava o uniforme completo dos Yanques, mas, apesar de gostar muito de assistir aos jogos, não parava de observar uma tatuagem no antebraço esquerdo de Stone. Enquanto todos os demais freqüentadores do bar não tiravam os olhos da televisão, Mike ficava imaginando o que poderia significar aquele numero: 16, desenhado no corpo do amigo de seu avô. Seria o numero da camisa de algum jogador? Ou, de repente um número de sorte?
O menino, formulando diversas hipóteses na sua cabeça, nem notou o tempo passar, o jogo acabou, os Yanques venceram, e agora, com o término da partida, os três amigos seguiam sentados e entre uma cerveja e outra, debatiam diversos assuntos, até que o garoto Mike resolveu quebrar seu silêncio, intrometendo-se na conversa:

— Senhor Stone... O que significa essa tatuagem? – perguntou com curiosidade, apontando o “16”, desenhado no antebraço do velho.

— Bem... É uma longa história – respondeu o homem, surpreso, querendo fugir do assunto.

— Ora, Mark! Conte ao garoto – interrompeu Stuart.

— Isso mesmo, conte! – incentivou Jack
— Está bem seus curiosos, eu conto... Mas a próxima rodada é por conta de vocês.

— Ok, Mark, estamos ouvindo – concordou Stuart, fazendo um gesto para a garçonete trazer mais cervejas.

Mark Stone tomou um gole de cerveja e iniciou sua narrativa...

“Eu fazia parte da sétima companhia de salvamento e resgate dos bombeiros de Nova Yorque, e na nossa divisão havia um costume: quando um colega se aposentava, fazia uma tatuagem com o numero de pessoas que salvou durante sua carreira. Minha contagem começou em 1966, eu tinha 25 anos, era uma das primeiras vezes que eu saía numa operação de salvamento. Foi num prédio comercial na 5ª avenida. Quando chegamos no local a multidão na rua era imensa, bombeiros, policiais, ambulâncias, pessoas semi-carbonizadas sendo atendidas no meio da rua...
O prédio tinha trinta andares, e do décimo segundo para cima, estava tomado pelas chamas. Quando eu e mais três companheiros entramos no prédio, já havia várias equipes trabalhando nos resgates, nós subimos em direção ao décimo segundo andar, o hall das escadas já estava envolto pela fumaça. À medida que avançava, sentia cada vez mais o calor oriundo das chamas. Chegamos no patamar e nos deparamos com dois bombeiros de outra companhia tentando reanimar o coração de um homem de aproximadamente 40 anos. O bombeiro, a cada batida que dava no peito da vitima, sentia sua esperança de salva-lo esvair-se como a fumaça que saía pelas janelas. Com pancadas cada vez mais fortes ele insistia sem sucesso, até que seu companheiro interferiu:

– Não adianta, ele está morto.

Com as palavras do amigo ele não agüentou e desabou chorando, então seu companheiro dirigiu-se a nós:

– Um de vocês leve-o para fora, os outros venham comigo.

Cumprindo a ordem, um de meus amigos levou o bombeiro em choque, dois ficaram comigo, então seguimos o outro.

— Há mais gente neste andar – ele nos disse, ofegante, enquanto corria, atravessando o vasto corredor. – Ainda não sabemos quantos... Mas pelas minhas contas devem restar umas dez pessoas.

O ambiente estava sendo tomado pela fumaça, os andares de cima já tinham sido evacuados, pelo lado de fora nossos companheiros trabalhavam com as mangueiras, tentando conter as chamas que se espalhavam cada vez mais. Ao passarmos em frente a uma das portas, ouvimos pedidos de socorro. O bombeiro que seguíamos parou em frente à porta. ‘Afastem-se’, ele nos disse enquanto se preparava para entrar. Notando que a porta já estava em chamas pelo lado de dentro, ele a derrubou com um único chute. Quando a porta caiu, formou-se uma cortina de fogo à nossa frente.

– Aqui... Estamos aqui! – eram os gritos que escutávamos. Apesar de ouvir claramente os pedidos de socorro, não conseguíamos enxergar um palmo a frente dos olhos. Era um local de aproximadamente 50m² onde funcionava um escritório de advocacia, havia uma grande quantidade de arquivos, pilhas de papéis e algumas repartições feitas de pinos que dividiam o local em várias salas. Aquilo tudo queimava malditamente rápido, e para mim, aquele andar parecia a antecâmara do inferno.

Usando extintores, conseguimos apagar parcialmente as chamas da entrada da sala e penetrar no local. Logo que entramos, vimos sete pessoas desesperadas dentro de uma das repartições, impossibilitadas da sair devido às chamas que se formaram ao seu redor. Só podiam se limitar a gritar por socorro. Trabalhando novamente com os extintores, conseguimos abrir caminho e chegar até elas, duas estavam desacordadas devido à asfixia causada pela fumaça. Dois de meus companheiros carregaram as vitimas desacordadas para fora, enquanto eu e o outro bombeiro guiávamos o restante até a saída. Um dos rapazes do grupo disse com dificuldade:

— Ei, esperem... A moça nova ainda está La dentro.

— Que moça nova? – perguntei.

— A estagiária... Ela estava na ultima saleta à esquerda. Eu não a vi sair.

— É tarde demais! – advertiu-me o bombeiro que guiava o grupo.

Mas apesar do aviso, eu tinha que tentar, algo me dizia para ir lá.

— Você os leva para fora, eu vou lá! – foi o que eu disse ao meu colega.

—Tenha cuidado – ele replicou. – Eu volto para ajudar você.

Eu agradeci e parti em direção ao fundo do estabelecimento em chamas. À medida que ia avançando, as chamas aumentavam, não fosse minha roupa especial, eu não estaria aqui contando a história. Após alguns instantes, alcancei a tal saleta. Por sorte ela ainda não estava em chamas. Arrombei a porta com um único golpe. Foi quando a vi... Estava desacordada, presa sob um grande armário de ferro que caíra em cima dela.

— Ei... Acorde – eu disse, dando tapinhas em seu rosto.

Ela foi abrindo vagarosamente os olhos e eles encontraram os meus.
Era um anjo no meio de todo aquele inferno, tinha a pele branca como leite, as maçãs do rosto rosadas, cabelos negros e encaracolados, e grandes olhos verdes que eram de tirar o fôlego.

— Onde... Onde eu estou? – ela me perguntou ainda fora de si.

Quando eu expliquei a situação, a mulher voltou a si, mergulhando num rio de pavor.
— Me ajuda! Me tira daqui! – gritava assustada, me envolvendo com os braços.
— Calma... Como você se chama? – perguntei tentando acalmá-la.

— Esmeralda – agora com lágrimas nos olhos. – Senhor... Me ajuda... Por favor.

— Calma, está tudo bem... Preste atenção... Me chamo Mark, agora vou tirar este armário de cima de você, logo depois nós vamos embora. Tudo bem?

Ela assentiu com a cabeça.

Quando tentei levantar o maldito armário, notei que devia pesar uns quatrocentos quilos, e eu sabia que não poderia erguê-lo sozinho.

— Esmeralda – falei. – O armário é muito pesado, você terá de me ajudar.

— Tudo bem – ela respondeu, ainda chorando. – O que vamos fazer?

— Quando eu contar três, você me ajuda, vamos erguer o máximo possível, mas você terá de sair de baixo dele sozinha. Ok?

— Ok. – respondeu, contendo as lágrimas, parecia que agora tinha tomado algum ânimo.

— Vamos lá então... Um... Dois... TRÊS!

Pusemos o máximo de força que nos havia restado, conseguimos erguer o armário alguns centímetros.

– Agora é com você. Tire suas pernas daí. – ofeguei entre dentes.

— Eu não consigo! – gritou agoniada.

— Você consegue. Vamos! Não posso agüentar mais.

—Mark... Minhas pernas...

Foi então que eu observei rapidamente... Suas duas pernas estavam estraçalhadas do joelho para baixo. Quando ia dizer alguma coisa, veio a explosão.
Até hoje eu não sei dizer como aconteceu ou o que explodiu, só sei que depois do grande estrondo, o piso abaixo de nós desabou, fomos parar no andar de inferior.

Acho que levou uns trinta minutos até eu recobrar os sentidos, quando acordei em meio aos escombros, senti meu braço doer, por sorte ganhei apenas um braço quebrado com a queda, já Esmeralda... Bem... Ela não teve a mesma sorte. Quando a vi pela última vez ela estava olhando pra mim, aqueles lindos olhos verdes não demonstravam dor alguma, apesar de que agora, ela estava praticamente esmagada da cintura para baixo.

— É o meu fim, não é? – perguntou com a voz fraca e com lágrimas nos olhos.

Eu não entendia como ela ainda estava viva, como é possível uma pessoa com a metade do corpo esmagado, conversar normalmente? Parecia que ela tinha que me passar alguma mensagem antes de ir embora.

— Não diga isso – respondi, sentindo lagrimas percorrerem meu rosto. – Nós vamos sair dessa.

— Era meu primeiro dia de trabalho. Sabia? – ela me contou, sorrindo. Continuou: – Tenho 23 anos, estou no último ano da faculdade, era meu primeiro dia e veja o que acontece...

Enquanto ela falava, o fogo ia chegando perto. Usando o rádio, fiz contato com meus companheiros, dando nossa localização.

Ela continuou...

— Eu ia me casar mês que vem, sabia? Robert é um bom homem, ele é médico.

— Você “ia” não. Você vai se casar. Os outros já vão chegar e nos tirar daqui. – mesmo sabendo que não aconteceria, eu tinha de dar alguma esperança a ela.

Apesar das lagrimas nos olhos, sorriu novamente.

— Não, Mark, é o meu fim... É o meu fim e você sabe disso.

O fogo crescia e chegava cada vez mais perto. Foi então que escutei um ruído de marretas batendo no concreto, uma fenda de luz entrou pelo andar destruído, eram os outros vindo nos socorrer.

— Estamos aqui! – gritei.
— Agüente firme... Estamos chegando – eles responderam, continuando a remover os escombros para chegar até nós.

— Eu tinha um sonho de um dia me tornar uma grande advogada – continuou Esmeralda.

– Você vai querida... Você vai.

— Diga a Robert que eu o amo. Está bem?

— Você mesmo vai dizer – respondi.

O fogo estava a apenas alguns centímetros de nós, os outros estavam quase chegando. De repente ela me fez o pedido... Eu nunca poderia esperar ouvir palavras como aquelas, mas ouvi. Esmeralda envolveu minha mão com as suas e me pediu:

— Me mate, Mark... Eu não quero morrer queimada.

— Do que está falando? Eu... Eu não posso fazer isso.

— Eu imploro... Por favor.

Eu hesitei um minuto e o fogo começou a queimá-la.

— Eu imploro... Está doendo. Me mate! Me mate! – ela gritava de dor e mesmo assim eu não pude fazê-lo.

Senti alguém me puxar por trás, eram os outros que tinham chegado.

— Esperem... Ajudem-na! – eu berrava. Mas era tarde demais, o fogo já havia tomado conta de todo o local.

Enquanto eles me puxavam pra fora, eu podia ouvir os gritos de dor de Esmeralda. Ela me pediu que a ajudasse e eu não pude.

Depois o que me lembro é de estar sentado na calçada do lado de fora do prédio, e de uma mulher vir falar comigo. Devia ter uns cinqüenta anos, não deixei de notar algo familiar nela. Se agachou na minha frente e acariciou o meu rosto. Tinha grandes olhos verdes, como os de Esmeralda, mas os dela eram diferentes. Este era o olhar mais triste que eu já vira em toda minha vida. Com uma voz doce e suave, ela me falou:

— Eu sonhei com você... Você era um anjo que vinha salvar minha filha... Mas não estou vendo ela. Onde está minha esmeralda?

Ela ficou alguns segundos acariciando meu rosto e esperando uma resposta, mas não veio nenhuma. Então a mulher partiu... Sem dizer nada, apenas... Foi embora.”

Com o término da história narrada por Mark, ele e todos os ouvintes estavam com lagrimas nos olhos. O garoto Mike encostou sua mão na de Mark e tentou confortá-lo:

— Não fique assim, senhor Mark. Olhe sua tatuagem... O senhor salvou 16 vidas não salvou?

— Não garoto... 16 foi o número de vidas que eu perdi!

2 comentários:

  1. Só teve um conto que me deixou com esse bolo na boca do estomago, agora o seu me atinge de uma forma bem parecida. Não tão romantica, mas igualmente angustiante, triste e feliz (não sei se me fiz entender), com um final muito bom.


    Parabens...



    ='-'=

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  2. medo.. tão lindo. angustiante, agonizante..
    em outras palavras, perfeito.

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