quinta-feira, 12 de março de 2009

O Último Poema

© 2009, by Gustavo Pierobom

Na penumbra do minúsculo barraco o homem enfrentava mais uma noite de insônia, ao som das goteiras que inundavam o lugar ele lembrava-se da sua juventude, com o rosto desfigurado devido a um tombo quando bebê, era descriminado pelas tutoras do orfanato. “Eu já falei pra você se comportar sua aberração!” era o que berrava a mulher enquanto espancava a criança com um cabo de aço. Embora fosse muito inteligente, abandonou a escola na segunda série, não agüentava mais a inimizade e os deboches dos colegas, “Anormal”, “Aberração” eles zombavam o dia todo. Aquilo foi a gota d’água, certo dia fugiu da escola e nunca mais voltou, nem para ela e nem para o orfanato. A vida na rua para uma criança de oito anos não era fácil, ainda mais com seu rosto daquele jeito, ao pedir esmolas no sinal era olhado com desprezo, por isso a recompensa era menor ou quase sempre inexistente, era descriminado pelos outros moradores de rua que não o aceitavam em seus grupos, muitas vezes quando conseguia algum dinheiro para comer, era roubado pelos garotos mais velhos. Sobreviva tomando água da chuva e juntando restos de comida nas lixeiras de restaurante. Certa vez achou um velho dicionário no lixo, sem mais nada para fazer passava noites e noites à luz dos postes lendo várias e várias vezes aquelas milhares de palavras.
O barulho fez com que o homem fosse arrancado das suas tristes lembranças, era o trem passando novamente, seu barraco tremia todo e os ratos corriam pelo local.
Seis da manhã, chegava a hora de sair novamente, cuidando carros para ganhar alguma moeda, pedindo esmolas aqui e ali, assim ele sobreviva a mais um dia. Já era noite quando voltava para seu barraco, com o pouco dinheiro que ganhava comprava aguardente e cigarros, não era mais necessário comprar comida, após tantos anos comendo lixo ele já havia se acostumado. Seus pés descalços e cheios de feridas doíam no asfalto gelado pelo frio do inverno.
Em seu barraco escuro somente tendo os ratos e baratas como companhia, ele deitava na sua cama feita com alguns sacos de areia e entre um gole de aguardente e uma baforada de cigarro escrevia seus poemas, usava com destreza as palavras que aprendera no velho dicionário, certa vez pensou em tentar vender seu trabalho, mas novamente fracassou. Quem iria comprar pedaços de jornal com alguns rabiscos de um mendigo deformado? Ninguém! “Ninguém”, esta era uma palavra que ele conhecia bem o sentido, ninguém o ajudava, ninguém o notava, ninguém olhava por ele. Ninguém!
Ele estava cansado daquilo tudo, além da sua poesia não tinha mais nada, cada dia era mais difícil e dolorido de sobrevier sozinho naquela selva de pedras, então ele desistiu.
Aquele dia foi diferente, ao invés de usar seu dinheiro pra comprar o aguardente e os cigarros, ele foi até uma papelaria (claro que não o deixaram entrar, foi atendido na porta) comprou uma cartolina branca e uma caneta dourada, aquele seu ultimo trabalho necessitava um material especial.
Chegando no seu barraco, após algumas horas fazendo rascunhos nos seus velhos jornais ele escreveu seu ultimo poema, demorou mais uma hora para que transferisse as palavras para a cartolina, usando a caneta dourada ele escreveu cuidadosamente as letras com a maior perfeição que sua caligrafia permitia. Finalmente estava pronto... Seu poema de despedida.
Usando seu velho cobertor ele recortou algumas tiras e as transformou em corda, empilhou alguns sacos de areia em baixo de um caibro, subiu, fez o laço e pôs em volta do pescoço, após um minuto de reflexão algumas lágrimas percorreram seu rosto, ele chorou por não ter por quem chorar. Sua vida foi infiel a ele até mesmo na hora da morte, quando pulou ao invés da corda quebrar seu pescoço de uma só vez, o asfixiou lentamente até arrancar seu ultimo suspiro.
Foi um mês depois que um funcionário da prefeitura que procurava focos do mosquito da dengue pelo subúrbio encontrou o barraco, antes de entrar ele sentiu o forte cheiro que vinha de dentro do local, ao entrar deparou-se com um corpo podre e comido pelos ratos balançando na forca. Quando recuperou-se do choque ele examinou o local e encontrou um saco de lixo com vários recortes de jornais e de papelão, ali devia conter milhares de poemas escritos durante toda uma vida, observando melhor encontrou a cartolina já amarelada, nela continha as seguintes palavras...

“Adeus...
Adeus ao carro que nunca dirigi;
Ao livro que nunca li;
Ao terno que nunca vesti;
À fome que eu senti.
Adeus...
Adeus à mãe que não me criou;
À mão que não me amparou;
À tristeza que me tomou;
À solidão que me abrigou.
Adeus...
Adeus à beleza não admirada;
À testa não beijada;
À pele não acariciada.
À felicidade não desfrutada.
Adeus...
Adeus á doença;
Ao que não compensa;
Ao que não fez diferença;
Ao que não tive crença.
Adeus...
Adeus ao que não foi dito;
Ao tempo perdido;
Ao homem agredido;
Ao amor não correspondido.
Adeus...
Adeus ao que não perdoei;
Ao beijo que não dei;
Ao lugar que não cheguei;
A tudo que odiei.
Adeus...
Adeus a quem não notou;
Ao que me magoou;
Ao que não me ajudou;
A quem não me amou.
Adeus...
Estou partindo ao encontro
do Deus que não me abençoou
ou do Diabo que me condenou.
Adeus.”

Assinado: O homem que não esteve aqui.

5 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Eu simplesmente adorei esse poema.

    Tenho uma grande admiração por pessoas que saibam escrever esse tipo de texto... Talvez por eu mesma não conseguir, ou porque as pessoas realmente fazem coisas magnificas e me toquem... Talvez por, no fundo, parecer comigo... com cada uma das pessoas.



    Parabens...



    ='-'=

    ResponderExcluir
  3. Que dramático, como numa conversa entre eu e vc no msn, vc estava msm com uma "inspiração negra" quando escreveu!

    ResponderExcluir
  4. Ah, você arrasou nesse, Guga :) Ficou muuuuuito bom, de verdade. Tudo bem que eu sou suspeita pra falar porque sou apreciadora dos poemas de uma forma geral, mas como a Kah disse, também não sou lá muito habilidosa no que diz respeito a escrevê-los. Então, admiro essa sua capacidade e te parabenizo sinceramente pela qualidade crescente dos seus textos. Esse em especial realmente me emocionou, adorei!

    ResponderExcluir
  5. Uma história perfeita, junto á uma narração ótima
    que nos prende a essa realidade paralela, parabens Gustavo, a estória está ótima, e o poema perfeito

    ResponderExcluir