segunda-feira, 2 de março de 2009


O trem da quarta estação
Acsa Fialho©

Já era noite na pequena cidade de Desmond Hill; o sol já se punha, levando com ele as cores rosadas do céu. No veludo negro e impetuosamente desprovido de estrelas, apenas a imensa e clara Lua repousava. Talvez não houvesse observação melhor para se fazer, especialmente para August que passava suas noites inteiras a observar o horizonte, ou qualquer coisa que propusesse algum resquício de paz interior. Ele suspirou, então. Os dedos finos e compridos tamborilavam na lateral quente da fumegante xícara de café.

― August? ― uma velha senhora bateu na porta, entrando no aposento com cautela. Ela caminhou até ele e indagou ― Querido, você não quer ir dormir? Já está tarde. Você faz isso todas as madrugadas. É por isso que seus olhos estão tão cansados e cheios de olheiras.

Então, ele sorriu um pouco, e fitou-a com os olhos pálidos. Beijou o topo da cabeça da velhota e voltou a mirar o infinito.
― Não se preocupe, mãe. Vou ficar bem.


― Vai ficar bem? Você diz isso todas as noites. Mas é claro que não está bem. Não está nada bem.

― Já lhe disse para não se preocupar, mamãe. Só ando meio cansado, e é só.

― Mas cansado de quê? ― insistiu a mulher com um tom de voz tipicamente maternal. ― Você passa o dia inteiro escrevendo coisas, ou tocando aquela flauta. E vez ou outra sai para fazer alguma coisa que preste. Como pode estar tão cansado?

― Mamãe ― ele a fitou outra vez ―, acho melhor você dormir um pouco e se preocupar menos. Está tudo bem.
Então, vendo que não adiantaria continuar a conversa, a velha senhora saiu do aposento sem dar uma palavra, mal sabendo que aquela seria a última vez. August observou a porta se fechando; os olhos tristes e vazios de emoções voltaram a mirar a janela. Se a vista que a janela proporcionava fosse a mais bela de todas, ele poderia ter uma desculpa para passar ali todas as noites. Mas, ao invés disso, a janela de madeira velha emoldurava apenas um denso campo repleto de mato e árvores infrutíferas, que em algum ponto no fim do horizonte tocavam o céu. Ele respirou fundo aquele ar verde. Pegou sua flauta, um velho chapéu e pulou a janela. Lá fora, a tristeza era branda.

Com os passos tímidos e graciosos, ele caminhava com as mãos erguidas enquanto uma leve melodia saía dos poros da flauta. Alguns o olhavam de esguelha, como se ele fosse anormal demais para viver entre eles. Seus passos o levavam a mergulhar cada vez mais no campo repleto de mato. Cada vez mais longe da casa – e, por conseqüente, da janela –, ele se sentiu aliviado por estar literalmente só. Colocou a flauta no bolso, pôs o chapéu e correu matagal adentro. Então, cansado e ofegante, sentou-se em uma velha pedra.

― Ah, vamos lá... Apareça! ― sussurrou ele para o vazio ― Você disse que viria na quarta estação. Você disse que chegaria no inverno! Hoje começou o inverno, não está vendo? Já está ficando frio aqui. Vamos, apareça... Não me deixe te esperando mais alguma eternidade...

E essa última frase em particular saiu como uma confissão. Ele colocou o rosto nas mãos, e, numa inútil esperança de se distrair, começou a desprender as raízes do mato que flanqueava o terreno. Seus olhos se encheram de lembranças...

― Ei, não corra! Não sou mais um menininho. Já estou ficando velho! ― o homem dizia
nos intervalos entre as gargalhadas, enquanto, inutilmente, tentava alcançar a pessoa mais a frente.

― Tudo bem. Eu não sabia que eu amava um idoso! ― a mulher respondeu em um tom divertido, pousando as mãos na cintura, arquejante.

― Sabe, querida ― o homem se aproximou dela e os dois caíram sobre o mato, fitando o céu negro mais acima ―, está vendo aquelas estrelas? Elas não podem chegar nem perto do número de vezes que pensei em você enquanto esteve fora.

― Pare de exagerar, August.

― Juro pela minha vida! ― ele beijou os dedos cruzados ― Você me deixou sem chão.

― Certo, certo ― ela resmungou. ― Mas o que importa é que já estou aqui, não é?

― Mas é claro. Você e nossos futuros filhos.

― Que filhos?

― Mas é claro que vamos ter filhos. Você não quer?

Ela pareceu pensativa, com um receio e aflição patente na expressão
esboçada no rosto fino.

― Claro que sim, que pergunta mais sem cabimento!

― Você hesitou, querida. Quando uma pessoa hesita é por que...

― Já lhe disse que quero ter filhos. Vamos ter um monte deles.

Então ele sorriu, pressionando seus lábios aos dela.

― August?

― Sim?

― Preciso ir embora.

― Mas já? Não! Você não pode ir embora! Toda vez que você vai, não volta mais...

― Meu querido, olhe pra mim ― ela segurou o rosto dele entre as mãos. ― Vou poder te
explicar em breve o porquê de eu ter que ir embora sempre, e voltar de tempos em
tempos. Prometo que irei te contar ― e então, ela se levantou.

― Quando você volta?

― No inverno, meu amor. Como sempre. Na quarta estação do ano ― e virou-se para o lado oposto.

― Mas... Espere! Por que tem que se ser sempre o inverno? Por que não vem no verão? Como eu queria te levar pra ver o mar, ou pra colhermos flores na primavera! Ou darmos uma volta pelo lago no outono... Mas por que o inverno?!

― Em breve eu te explico. Feche os olhos. ― Ele, a troco de uma apaixonada obediência, fechou os olhos e esperou. Passados alguns instantes os abriu outra vez, e ela simplesmente não estava mais lá.

Tal lembrança fez com que August arrancasse as raízes do mato com mais força, enquanto algumas lágrimas se misturavam com a terra. Então, pegou a flauta com as mãos sujas de densos flocos de barro, e tocou sua melhor melodia, ao passo que sentia alguns gélidos flocos de neve caindo em seu rosto.

― Eu disse que voltaria no inverno ― soou uma voz atrás dele. Subitamente, com uma ansiedade e aflição mescladas a um susto momentâneo, ele se virou na direção da voz.

Lá estava a imagem da pessoa por quem ele esperara durante o ano inteiro. Parada debaixo de uma sombra qualquer projetada por uma árvore cujos galhos apresentavam ainda algumas folhas, estava ela. Ela, apenas. August correu até ela e a girou em um abraço, ainda sem dizer uma palavra.

― Eu juro que dessa vez você não vai embora. Eu juro!

― Vamos, August!

― Pra onde diabos você vai me levar?

― Preciso te mostrar uma coisa.

Ela segurou a mão dele, guiando-o para um lugar cada vez mais longe da cidade, e mais mergulhado no matagal. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som de folhas secas trituradas sobre pedregulhos. Ao passo que andavam, algo em seu íntimo alertava August a recuar. Então, passados longos minutos de silenciosa caminhada, ele pensou em questionar algo, mas eles já haviam chegado ao local. Ela parou em frente às ruínas de um trem, onde alguns dos vagões pareciam estar tortos, e outros, caídos.

No interior das ruínas, haviam bancos e janelas em perfeito estado, como se nunca tivessem sofrido acidente nenhum. Sobre algumas das mesas – provavelmente usadas durante as refeições nas viagens – haviam vasos que abrigavam flores murchas.

Então, completamente confuso, ele largou a mão dela e indagou:

― O que você quer me mostrar? Um trem destruído. É isso? ― Ela, por sua vez, caminhou em direção a uma mala jogada em um dos bancos. Abriu-a e retirou um retrato envelhecido. Após passar os dedos sobre a superfície empoeirada, sorriu e o levou até August. Apontou para um rapaz e disse:

― Lembra quando eu te dizia que você parecia com meu primo? Veja só! Parece até que são as mesmas pessoas.

― Essa moça da foto... é você? ― perguntou ele, apontando para uma linda mulher ao lado do rapaz.

― Ah, sim. Eu estava tão... Viva.

Então, August deixou seus olhos caírem sobre a inscrição da fotografia. Seus olhos se esbugalharam e ele gargalhou.

― 1902? Essa foto é de 1902? Amor, você conseguiu me assustar ― ele voltou a rir. Ela nada disse, apenas o fitou com os olhos cerrados à espera do que viria depois. ― Ah, vamos, amor. Dê uma risada! Você tem que admitir que essa sua brincadeira foi
incrível.

Ela continuou em silêncio e caminhou rumo a um banco à esquerda. Passou os dedos sob a superfície e sentiu algumas lágrimas lhe descendo nas bochechas. August correu até ela e perguntou:

― Falei algo de errado, querida? Me perdoe. Eu achei que...

― Foi aqui, August ― ela sussurrou, secando as lágrimas.

― Aqui o quê?

― Onde eu morri.

Morrer. A palavra reverberou um longo tempo nos ouvidos de August até ter a sensação de que seu chão estava sumindo. Ele voltou a olhar a inscrição da foto e sussurrou:

― O que foi que você disse?

― Era inverno ― ela caminhou até a janela, pousando os dedos no vidro. ― Era meu aniversário. Meus pais decidiram me levar para assistir a um concerto de música na Irlanda. Mas pra ir até lá, nós precisávamos pegar o navio na capital. Então, embarcamos nesse trem que chegaria à capital antes de o sol nascer. Eu estava com meu primo nesse vagão. Ouvimos alguns barulhos e... ― ela chorou outra vez. ― O vagão onde estávamos se chacoalhou. Os de trás estavam caindo, parecia que o trem estava com problemas. Minha mãe e meu pai estavam nesses vagões. Eu fui até o terceiro vagão que estava prestes a cair, mas... Tudo o que me lembro foi de ter visto os vagões se desprenderem uns dos outros e meus pais foram se distanciando...
Então, uma explosão os matou. Eu tinha asma, e estava na porta do vagão que havia
escapado. Fiquei desesperada e sem ar. Vim até esse banco e abracei a foto dos meus pais, enquanto sentia que meu último suspiro estava acabando. Eu também tinha problemas cardíacos. Não agüentei muito tempo. Foi assim que eu morri.

August, como se tivesse recebido a visita do diabo, foi se afastando da mulher aos poucos, sorrindo nervosamente.

― Você não está falando sério. Que bobagem! Sabe, você está me assustando. Pare com essa brincadeira.

― Eu estou morta, August. Ninguém me vê. Ninguém. Mas por algum motivo, você consegue. Eu morri no inverno, e é só no inverno que você pode me ver. Eu tinha medo de que você não me visse mais, e achasse isso estranho. Fiquei com medo de te contar. É por isso que sempre inventei desculpas para aparecer apenas no inverno. Na quarta estação. E é por isso que eu hesitei quando você falou de filhos ― ela riu baixinho. ― Uma fantasma grávida? Não é engraçado e divertido?

― Não. Não tem nada divertido.

Então, ela desfez o sorriso e as lágrimas voltaram.

― Me desculpe, querida. Me desculpe. Isso é difícil pra mim! ― disse ele.

― Tudo bem, August. Me perdoe por ter deixado isso continuar. Eu estou morta! Vou te
deixar em paz. Eu juro que nunca mais volto aqui em Desmond Hill. Eu prometo ― e virou-se para o lado oposto. Ele a segurou pelo braço e encarou-a nos olhos.

― Não vai embora mesmo. Eu não vou permitir. Se você está morta, e o único jeito de te ter pra sempre é estando morto também, só tenho um jeito ― ele se virou e saiu do trem em ruínas. Ela o seguiu apressadamente.

― Aonde você vai? August!

― Já ouviu falar em Romeu e Julieta? Pois então. Romeu estava certo ― ele se inclinou para frente e apanhou um caco de vidro jogado no chão.

― Não me diga que vai... Não, August! ― berrou ela, correndo para alcançá-lo.

Ele sorriu, e apertou o caco de vidro contra o pescoço, enquanto gotas de sangue pontilhavam sua camisa branca. Ela gritou. Ele também. Então, quando o caco pareceu atingir a veia principal, ele caiu no chão.

― Por favor, não morra por minha causa ― ela sussurrou quase sem voz, deslizando sobre os joelhos rumo ao corpo dele.

― Ei ― ele balbuciou com a voz fraca, já em suas últimas palavras, erguendo um dedo para secar as lágrimas dela ―, não chore, querida... Daqui a pouco nos encontraremos. Eu amo você.

Ela agarrou-se ao tronco, e então, com os olhos úmidos, ela olhou ao redor. Flocos de neve cobriam a superfície de tudo. Havia chegado a quarta estação.

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